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Uma enchente na vida

Se o desejo sedento causa ardência e sofrimento, como ele lá se instala na mente afinal de contas? As coisas não surgem do nada. Não há nascimento virgem em nossos estados mentais. Tudo tem suas causas e condições.  O que você faz ou qual é a qualidade mental que favorece esta atitude desejosa? Qual é a atitude que você mantém na mente e que favorece este crescimento do desejo sedento? Uma das respostas mais imediatas é a de não ter a mente e os sentidos controlados.

Estamos rodeados por muitos objetos gostáveis e desejáveis (objetos, pessoas, situações, sentimentos, ideias). Boa parte dos contatos sensoriais que temos envolve algum grau de prazer. Prazeres visuais, sonoros, táteis, gustativos e olfativos estão por toda a parte. Se você é de um tipo intelectual, talvez entrar numa biblioteca com livros de temas muito interessantes para você possa fazer surgir esse prazer. Saímos à procura de ideias e conversas, e há todo um mundo de estímulo intelectual que nos envolve de tal forma que nos perdemos naquilo. Há prazer nas ideias e nas palavras, no mundo lá fora e nas sensações internas, e se você não tiver cuidado com isso, pode criar também um mundo de sofrimento para você. Grande parte da propaganda em massa, por exemplo, no nazismo, no fascismo, no populismo,  consiste de envolver as pessoas em ideias fáceis de serem digeridas, que causam prazer e excitação aos ouvintes. O orador político ardiloso é capaz de evocar sentimentos que interessam à massa, ou fazer com que a massa acredite que tais ideias são importantes para ela. Ficamos envolvidos com ideias e sentimentos, entramos na correnteza das paixões.

Isso não é diferente em nossas relações com as pessoas. Quando jovens, há o interesse pela conquista, e há tantas oportunidades para o envolvimento emocional intenso, com suas expectativas, vitórias e decepções. E o que dizer de nossa relação com a mídia, quando decidimos ver um episódio ou um curto documentário e mal percebemos e já estamos a tarde ou a noite inteira vidrados na tela? Isso não mostra só uma falta de vida fora das telas coloridas, mas mostra também uma ânsia por sentimentos. Tal fome nos leva a horas sentados passivos, consumidores inertes de imagens e sons. Existe um alimento lá que você pensa precisar. Você vai à busca das paixões, das traições, das raivas, das vinganças, e tudo isso movimenta a sua vida. É um tipo de desejo sedento atuando e que se torna um vício porque todo dia você precisa ter sua dose. Você deixa de viver para ter aquele coquetel de emoções.

Daí, com frequência, a enchente também ser uma metáfora para este tipo especial de desejo. Ser dominado pelo desejo sedento é como você ser jogado num local aonde a enchente chegou. Você se sente tomado e incapacitado. É algo fácil de identificarmos em algumas situações de vida. É como se um tsunami tivesse passado, você não tem uma bóia, não tem onde se segurar, as coisas estão em constante movimento e você não tem um porto seguro, nem um chão para se firmar. A enchente simplesmente vem e leva toda sua vida. Escravidão e vício mostram o lado do aprisionamento. Enchente mostra o poder superior que esse desejo tem sobre sua vontade.

Há dois tipos de enchente: (1) aquela que alaga o lugar onde você está, deixando que você se debata e afogue; e (2) aquela que lhe arrasta para lugares que você não desejaria. Na primeira você quase se afoga diante das circunstâncias da vida, e na outra as circunstâncias da vida lhe carregam. Num caso você está parado e imobilizado, noutro caso você é forçado ao movimento e não sabe como parar.

Tudo isso ocorre quando você permite que a enchente chegue. E ela chega porque não houve tanta vigilância ao que estava entrando pelas portas dos sentidos. Os contatos sensoriais chegam, não prestamos uma atenção sábia, nos falta vigilância e sabedoria para perceber que fissuras na barragem estão aparecendo. Entende como mindfulness (vigilância sábia) e meditação são importantes?

* Ricardo Sasaki é psicólogo clínico e um dos professores do NUMI.

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