Além da McMindfulness

~ por Ron Purser e David Loy

* Por favor, confira a nota do editor ao final da página antes de ler o artigo [1].

De repente a meditação ‘mindfulness’ se popularizou, passando a fazer parte da rotina de escolas, empresas, prisões e agências governamentais, incluindo o exército dos EUA. Milhões de pessoas estão recebendo benefícios tangíveis a partir de sua prática: menos estresse, melhor concentração, talvez um pouco mais de empatia. Desnecessário dizer que este acontecimento é importante e bem-vindo, mas, há uma sombra.

A revolução ‘mindfulness’ parece oferecer uma panaceia universal para resolver quase toda sorte de preocupação diária. Livros recentes sobre o tema incluem: Mindful Parenting, Mindful Eating, Mindful Teaching, Mindful Politics, Mindful Therapy, Mindful Leadership, A Mindful Nation, Mindful Recovery, The Power of Mindful Learning, The Mindful Brain, The Mindful Way through Depression, The Mindful Path to Self-Compassion [Nota do editor: Uma tradução desses títulos para o português seria mais ou menos assim: Paternidade Consciente, Alimentação Consciente, Ensino Consciente, Política Consciente, Terapia Consciente, Liderança Consciente, Nação Consciente, Recuperação Consciente, O Poder do Aprendizado Consciente, O Cérebro Consciente, O Caminho Consciente através da Depressão, O Padrão Consciente para a Autocompaixão]. Quase diariamente os meios de comunicação citam estudos científicos que relatam os inúmeros benefícios da meditação e como uma prática tão simples pode operar alterações neurológicas no cérebro.

A popularidade crescente do movimento ‘mindfulness’ também se transformou em uma indústria lucrativa. Consultores experientes empurrando a promessa de que o treinamento em ‘mindfulness’ irá melhorar a eficiência no trabalho, reduzir o absenteísmo e aumentar as “habilidades indiretas” que são cruciais para o sucesso na carreira. Alguns chegam a afirmar que o treinamento em ‘mindfulness’ pode agir como uma “tecnologia revolucionária”, transformando em organizações mais generosas, compassivas e sustentáveis até mesmo as empresas mais desestruturadas. Até agora, no entanto, não foram publicados estudos empíricos que corroborem tais afirmações.

Em seus esforços mercadológicos, os defensores do treinamento em ‘mindfulness’ geralmente prefaciam seus programas como sendo “de inspiração buddhista”. Há certo prestígio e vanguardismo em dizer a neófitos que a meditação ‘mindfulness’ é um legado do Buddhismo – uma tradição famosa por seus métodos de meditação antigos e testados pelo tempo. Mas, algumas vezes, no mesmo fôlego, consultores asseguram aos seus patrocinadores que sua marca particular de meditação ‘mindfulness’ abdicou dos laços e filiações às suas origens buddhistas.

Desacoplar ‘mindfulness’ de seu contexto buddhista ético e religioso é compreensível como um expediente conveniente para tornar o treinamento um produto viável no mercado aberto. Mas a corrida para secularizar e mercantilizar ‘mindfulness’ numa técnica comercial pode estar levando a uma desnaturação infeliz dessa prática antiga, destinada a muito mais do que aliviar uma dor de cabeça, reduzir a pressão arterial ou ajudar executivos a se tornarem mais centrados e produtivos.

Enquanto uma técnica secularizada enxuta – o que alguns críticos estão chamando de “McMindfulness” – pode torná-la mais palatável ao mundo corporativo, a descontextualização de sua finalidade libertadora e transformadora original, bem como sua fundação na ética social, equivale a uma barganha faustiana. Em vez de aplicar ‘mindfulness’ como um meio de despertar as pessoas e as organizações em relação às raízes prejudiciais da ganância, má vontade e ilusão, ela tem sido comumente remodelada numa técnica banal e terapêutica de autoajuda que pode, na verdade, reforçar aquelas raízes.

A maioria dos relatos científicos e populares que circulam nos meios de comunicação tem retratado ‘mindfulness’ em termos de redução do estresse e melhoria da atenção. Esses benefícios de desempenho humano são apregoados como condições sem as quais ‘mindfulness’ não geraria maiores atrativos para as empresas modernas. Mas ‘mindfulness’, como entendida e praticada dentro da tradição buddhista, não é meramente uma técnica eticamente neutra para reduzir o estresse e melhorar a concentração. Em vez disso, ‘mindfulness’ é uma qualidade diferenciada da atenção que é dependente e influenciada por muitos outros fatores: a natureza de nossos pensamentos, palavras e ações, a nossa maneira de ganhar a vida, e nossos esforços para evitar comportamentos nocivos e inábeis, enquanto desenvolvemos aqueles que são favoráveis à ação correta, à harmonia social e compaixão.

É por isso que os buddhistas diferenciam a ‘mindfulness’ (vigilância) correta (samma sati) da incorreta (miccha sati). A distinção não é moralista: a questão é saber se a qualidade da consciência é caracterizada por intenções saudáveis e qualidades mentais positivas que levem ao florescimento humano e otimizem o bem-estar tanto dos outros quanto de si mesmo.

De acordo com o Cânone Pāli (os primeiros ensinamentos relatados como vindos do Buddha), até mesmo uma pessoa que comete um crime premeditado e hediondo pode estar exercitando a atenção plena, embora incorreta. Claramente, a atenção plena e a concentração focada de um terrorista, de um assassino franco-atirador ou de um criminoso do colarinho branco não têm a mesma qualidade da atenção que o Dalai Lama e outros adeptos buddhistas desenvolveram. ‘Mindfulness’ correta é orientada por intenções e motivações baseadas na autocontenção, estados mentais saudáveis e comportamentos éticos – metas que incluem, mas suplantam a redução do estresse e melhoria da concentração.

Outro equívoco comum é que a meditação ‘mindfulness’ é uma questão interna, privada. ‘Mindfulness’ é, muitas vezes, comercializada como um método de autorrealização pessoal, um alívio das provações e tribulações da implacável vida corporativa. Tal orientação individualista e de consumo para a prática da meditação ‘mindfulness’ pode ser eficaz para a autopreservação e autopromoção, mas é essencialmente impotente para atenuar as causas do desconforto coletivo e organizacional.

Quando a prática de ‘mindfulness’ é compartimentada desta forma, a interligação de motivos pessoais se perde. Há uma dissociação entre a própria transformação pessoal e o tipo de transformação social e organizacional que leva em conta as causas e condições do sofrimento num ambiente mais amplo. Tal colonização de ‘mindfulness’ também tem um efeito de instrumentalizar e reorientar a prática às necessidades do mercado, ao invés de uma reflexão crítica sobre as causas do nosso sofrimento coletivo ou dukkha social.

O Buddha enfatizou que seu ensinamento era sobre a compreensão e erradicação de dukkha (“sofrimento” no sentido mais amplo). Então, como fica o dukkha causado pela maneira como as instituições funcionam?

Muitos defensores das empresas argumentam que a mudança transformacional começa consigo mesmo: se a sua mente pode se tornar mais focada e tranquila, então a transformação social e organizacional virá naturalmente. O problema dessa formulação é que hoje as três motivações nocivas que o Buddhismo destaca – ganância, má vontade e ilusão – já não estão confinadas a mentes individuais, mas tornaram-se institucionalizadas em forças além do controle pessoal.

Até agora o movimento ‘mindfulness’ tem evitado qualquer consideração séria sobre porque o estresse é tão difundido nas instituições empresariais modernas. Em vez disso, as corporações entraram na onda da meditação ‘mindfulness’ porque convenientemente invertem o ônus para o empregado individual: o estresse é enquadrado como um problema pessoal, e ‘mindfulness’ é oferecida como o remédio certo para ajudar os funcionários a trabalharem mais eficientemente e com calma dentro de ambientes tóxicos. Envolta numa aura de carinho e humanidade, ‘mindfulness’ é remodelada como uma válvula de segurança, como uma forma de desabafar – uma técnica para lidar com e se adaptar às pressões e tensões da vida corporativa.

O resultado é uma versão atomizada e altamente privatizada da prática de ‘mindfulness’, que é facilmente cooptada e limitada ao que Jeremy Carrette e Richard King descrevem, em seu livro Selling Spirituality: The Silent Takeover of Religion como uma orientação “acomodacionista”. O treinamento em ‘mindfulness’ tem grande apelo porque se tornou um método moderno para subjugar distúrbios dos trabalhadores, promovendo uma aceitação tácita do status quo, e como uma ferramenta fundamental para manter a atenção focada em objetivos institucionais.

Em muitos aspectos, o treinamento corporativo da meditação ‘mindfulness’ – com sua promessa de que funcionários mais calmos e menos estressados serão mais produtivos – tem uma familiar e estreita semelhança com os agora desacreditados movimentos de “relações humanas” e de treinamento da sensibilidade que eram populares nos anos 50 e 60. Esses programas de treinamento foram criticados pelo uso manipulativo de técnicas de aconselhamento, como a “escuta ativa”, implantada como um meio de pacificar os trabalhadores, fazendo-os sentir que suas preocupações eram ouvidas enquanto as condições existentes no local de trabalho mantinham-se inalteradas. Estes métodos passaram a ser conhecidos como “psicologia das vacas”, porque as vacas contentes e dóceis dão mais leite.

Bhikkhu Bodhi, um monge buddhista ocidental muito franco, já alertou: “Na ausência de uma crítica social afiada, práticas buddhistas poderiam facilmente ser usadas para justificar e estabilizar o status quo, tornando-se um reforço do capitalismo de consumo”. Infelizmente, uma visão mais ética e socialmente responsável da meditação agora é vista por muitos praticantes como uma preocupação tangencial ou como uma politização desnecessária de sua jornada pessoal de autotransformação.

Espera-se que o movimento ‘mindfulness’ não siga a trajetória comum da maioria dos modismos corporativos – entusiasmo desenfreado, aceitação acrítica do status quo e eventual desilusão. A fim de se tornar uma genuína força positiva de transformação pessoal e social, ela deve recuperar um quadro ético e aspirar a fins mais nobres que levem em conta o bem-estar de todos os seres vivos.

 


[1] ‘Mindfulness’ é a palavra mais utilizada em inglês para traduzir um tipo de meditação de influência buddhista que tem se alastrado bastante no Ocidente nas últimas décadas. Essa palavra, originariamente, tinha como objetivo servir de tradução para a palavra ‘sati’ na língua pāli, mas claramente em solo ocidental foi modificando seu sentido, e atualmente é usada de várias maneiras diferentes daquele significado original buddhista. Em língua portuguesa, a palavra ‘mindfulness’, de difícil tradução, tem recebido diversas traduções ao longo dos anos. Uma das primeiras propostas foi traduzi-la como ‘conscientização’. Em meu livro ‘O Caminho Contemplativo’, de 1995, traduzi-a como ‘plena atenção’, porém ao longo dos anos desde então, por meio de reflexão e pesquisa em vários contextos, bem como da consulta com vários monges e eruditos, pareceu-me que a palavra ‘vigilância’ ou ‘observação vigilante’ é mais apropriada para a tradução da palavra ‘sati’ no contexto buddhista. Hoje, no Brasil, o uso mais comum é o de ‘plena atenção’ ou ‘atenção plena’, mas como indicado no começo desta nota, seu uso frequentemente é diferente daquele que o Buddha queria dizer no contexto original. Ao longo deste artigo optamos por manter a palavra ‘mindfulness’ pois a crítica do artigo é justamente ao uso desse sentido variado no ambiente ocidental, e que no Brasil tem sido divulgado como ‘plena atenção’ ou ‘atenção plena’. ~ Ricardo Sasaki

O artigo original apareceu no site do Centro de Estudos Buddhistas Nalanda, traduzido, com permissão, por Rosana Barbosa a partir da matéria do Huffington Post. © da tradução, 2013 Edições Nalanda

Reproduzido aqui no site do NUMI com a permissão do detentor do copyright da tradução.

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