Desejo sedento e mindfulness

Quando percebemos problemas em nossa vida, qual é a forma como nos relacionamos com eles? Se observarmos bem, perceberemos que quase que invariavelmente vai existir apego; e quase invariavelmente vai existir certo desejo também. Lembram que o desejo sedento é a base para o apego? Como é esse desejo? Pode ser que certos problemas em sua vida aconteçam porque há um desejo, algo que você quer muito e ainda não teve. Esse é um primeiro tipo de desejo. Você quer certo tipo de sentimento que você não tem, mas pode ter. Existe uma ânsia por ter aquele tipo de sentimento. O sentimento pode vir de uma situação, coisa, pessoa ou mesmo de um entendimento.

Outro tipo de desejo é aquele que vem de você já ter tido certa coisa e ter perdido. No primeiro caso você ainda não teve a coisa e tem esperança de ter porque você acha que aquilo vai lhe trazer a felicidade. Você anseia pelo sentimento de satisfação em ter aquilo. Ou pode ser também o desejo de recuperar algo que você perdeu. Junto com esse desejo de recuperar, vem o desejo de não ter mais a sensação de perda, a qual é desagradável. Em qualquer caso existe uma sede e essa sede é o significado principal do que tenho chamado de desejo sedento ou ardente[1].

O desejo sedento tende a se multiplicar. Uma vez que ele é ativado em relação a algo, as coisas relacionadas a esse algo passam a ser objeto desse desejo também. Obcecada por alguém, a pessoa fica obcecada também pela vida dela, por suas roupas, hábitos, palavras. Obcecada por uma situação, tudo o que se relaciona com tal situação passa afetar a pessoa profundamente. Uma rede de objetos de desejo é paulatinamente criada. Um motivo para essa inclinação em se multiplicar é que ela não é uma sede natural, aquela que surge de uma necessidade verdadeira e que se sacia ao ter a necessidade resolvida. O desejo sedento se alimenta de si mesmo, quanto mais desejo há, mais desejo é gerado.

Em termos práticos, faça o seguinte exercício. Tente se lembrar de situações no passado ou no presente em que você se sente ou se sentiu sedento mentalmente. Ficou mais fácil de entender, não? Trata-se aqui de distinguir um tipo especial de desejo, o desejo que dá sede, que arde, que até mesmo sangra. Isso porque você também tem desejos que não são desejos sedentos. É por isso que coloco este adjetivo ‘sedento’ depois da palavra ‘desejo’, porque nem todos os desejos são deste tipo especial. O desejo sedento é aquele desejo que lhe causa problemas. E o modo de você percebê-lo é através da sede que você tem. Tanto mais sede, mais perigoso ele é. É esse tipo especial de desejo que é a base para o surgimento do apego. E quando você tem a sede e o apego, você se torna um escravo.

Quando você desenvolve uma vigilância cuidadosa (mindfulness) em relação ao que você faz, fala e pensa, você consegue se tornar consciente desse tipo especial de desejo, quando e como ele surge, e do que realmente ele se alimenta. Você, então, não fica enredado nas armadilhas emocionais, refém de suas reações de se apegar ao prazeroso e fugir do desprazeroso. Essa maneira de se tornar consciente cria um espaço entre o que lhe acontece e suas reações habituais, possibilitando novas maneiras de entender seus desejos, apegos e prisões.

* Ricardo Sasaki é psicólogo clínico e um dos professores do NUMI.

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