Certa vez eu estava fazendo um retiro, na Índia, que tinha apenas meditação sentada durante onze dias. As sessões eram de uma hora, e depois disso você tinha alguns minutos para levantar, andar um pouco para lá e para cá, e começar uma nova meditação sentada. Assim os dias seguiam, apenas com as paradas para as refeições, desde as quatro da manhã até as nove e pouco da noite. O foco da prática era o de desenvolver uma equanimidade em relação às sensações corporais. Dor, prazer, o que quer que fosse, você lá estava para treinar a equanimidade. Todas as noites havia uma palestra por meio de vídeo. O mestre dirigindo o retiro lá estava no salão maior, ensinando em hindi, e o menor número de participantes que não dominavam o hindi, se reuniam numa sala menor, onde os vídeos pré-gravados vinham em inglês. A sala era pequena, e os cerca de 20 meditantes não tinham muito espaço entre si. Lembro-me que numa das noites, ao mudar de posição, encostei muito levemente no meditante do lado. A cara com que o indivíduo me olhou até hoje está em minha memória. Como o retiro era todo em silêncio, ninguém podia falar nada, mas sua expressão era suficiente para mostrar o completo desagrado e repúdio que perpassava por todo o seu corpo naquele momento. Barbaridade! Estávamos por onze dias praticando equanimidade às sensações corporais! Não era para que um incidente como aquele fosse registrado como “sensação, sensação”? Quando temos a visão de que meditação é algo que tem começo, meio e fim, podemos ser incapazes de levar isso ao dia a dia. Você treina uma coisa na sessão meditativa, e a esquece completamente na vida diária.
Podemos, então, até ter uma prática formal forte e intensa, mas a menos que compreendamos que a vida diária é também uma sala de prática, estaremos sempre dividindo a vida em duas seções diferentes. Os princípios de mindfulness trazem esta perspectiva mais ampla, de educação dos sentidos e consciência plena nas atividades diárias. E tais princípios são exercitados e aprofundados durante as práticas formais de meditação. A reunião das duas é o ideal. Podemos pensar nesse desenvolvimento como ocorrendo em um eixo horizontal e um vertical. O primeiro indica que mindfulness deve ser espalhada pela vida, em nossos sentidos nas diversas ocasiões em que eles tocam os objetos do mundo. Com isso jogamos a luz da conscientização nas situações da vida diária. Já o eixo vertical consiste no aprofundamente da prática meditativa formal.
A plena consciência na vida diária é muito importante, mas a habilidade da concentração também o é. Concentração é a habilidade de manter a atenção de modo consciente e voluntário em um objeto. Concentração não é muito mencionada nas introduções a mindfulness, mas é uma das habilidades paralelas importantes de serem desenvolvidas. Concentração ou, também se poderia chamar, estabilização mental, é uma habilidade principalmente desenvolvida durante a meditação formal.
Durante o aprendizado de um instrumento musical, não basta estar atento; é preciso sustentar a atenção durante algum tempo. Numa apresentação de, digamos, uma hora, é preciso estar atento ao momento presente e saber o que fazer, mas também fazê-lo durante todo o tempo. A concentração quando reunida a mindfulness elevará esta a outro nível. Não apenas veremos as coisas mais claramente, mas seremos capazes de sustentar tal percepção. Sem a concentração, mindfulness é superficial. Podemos estar atentos, mas tal capacidade é fraca e rapidamente se dispersa. A estabilização mental ou concentração é o alimento de mindfulness, é o que a fortalece. E para isso precisamos treinar a concentração.
Dessa maneira, desenvolvemos mindfulness em torno de um eixo horizontal, que é tentar estar atento, consciente, aberto, na maior parte das experiências cotidianas da vida: tomando banho, cuidando do filho, cozinhando, lidando com um cliente, sentado em uma praça, ao dirigir. E no eixo vertical usaremos as práticas formais para sustentar o estado de mindfulness por mais tempo e de modo mais intenso e detalhado. Aqui não estaremos interessados em atingir estados especiais, mas sim em desenvolver qualidades: estar presente e atento, reconhecer as distrações e voltar ao objeto escolhido, fazê-lo de uma maneira gentil, compassiva, com aceitação.
* Ricardo Sasaki é psicólogo clínico e um dos professores do NUMI.