Escrevo estas linhas numa praia deserta na costa ocidental da Ilha do Sri Lanka. Cheguei aqui após participar de uma conferência internacional com o tema “Ensinamentos Buddhistas para a Justiça Social e a Paz Mundial Sustentável”. A conferência ocorreu como parte das celebrações de Vesak, o maior festejo do calendário buddhista, marcando nascimento, iluminação e morte de Siddhattha Gotama, o Buddha. Nas palavras do atual Secretário-Geral das Nações Unidas, o português António Guterres: “Neste Dia de Vesak, celebremos a sabedoria do Senhor Buddha fazendo uma ação em benefício dos outros com um forte espírito de solidariedade”, e nesse sentido milhares de pessoas se reuniram no Sri Lanka num gesto de união e congraçamento. O país inteiro se mobilizou entre luzes, festividades, cantos e danças a fim de se relembrar dos ensinamentos desse homem sábio que viveu vinte e seis séculos atrás.
Terminados os dias de festejos e palestras, vim passar alguns dias nas belas praias desta ilha tropical. Além do mar diante de mim, uma edição do jornal India Today, com uma matéria a respeito de quatro hábitos de monges buddhistas que você poderia adotar para uma vida melhor. Ao invés de explicar sobre a data, os rituais e as doutrinas, os editores resolveram mostrar como qualquer um pode aplicar na prática alguns dos princípios milenares que dirigiram a comunidade buddhista. Infelizmente o artigo é extremamente curto, e por isso aproveito aqui para expandir esses quatro hábitos de maneira mais substancial para o praticante de mindfulness.
- Considere o minimalismo: Ao treinarmos uma atenção cuidadosa em nossas vidas é de se esperar que nossa relação com as coisas se modifique. Muito frequentemente essa relação é uma de prazer. Usamos os objetos (e também as pessoas) lá fora para obtermos prazer e alegria, levando a um acúmulo de objetos (e mesmo de interações pessoais). A vida meditativa, no entanto, nos mostra que a felicidade vem de dentro ou, sendo mais específico, vem de nossa relação com as coisas de dentro e de fora. Os monges buddhistas descobriram que ter muito não é sinônimo de felicidade, mas que, surpreendentemente, ter menos pode até ser mais efetivo para esse objetivo. Muitas posses levam às distração, maior tempo consumido para sua administração, menos tempo para desfrutar o momento presente e se dedicar às coisas mais importantes na vida. Não, não é preciso se livrar de tudo e ficar apenas com três mudas de roupa, um barbeador, uma agulha e linha, e uma sandália, como os monges, mas talvez você possa refletir melhor sobre quanto você precisa ter.
- Compartilhe seu conhecimento: Frequentemente nossos relacionamentos com as pessoas giram em torno do “eu, meu e mim mesmo”. Aquilo que seria um diálogo acaba se transformando em dois monólogos em que cada uma das partes apenas fala o que lhe aconteceu, o que sente, o que pensa sobre a própria vida. Podemos interagir em nossos relacionamentos colocando atenção a qual é a necessidade do outro. Compartilhar o próprio conhecimento significa se tornar percebedor da necessidade do outro e refletir quais os recursos que temos que poderiam ser de ajuda. Esses recursos podem ser materiais, intelectuais, emocionais, etc. Compartilhar conhecimento adquirido por intermédio de práticas pessoais é uma atividade comum para muitos monges. Você também pode fazê-lo. Não se trata aqui de doutrinar ou impor as próprias crenças aos outros, mas de modo empático e compassivo compartilhar aquilo que sabemos de um modo habilidoso.
- Desenvolva empatia: Seguindo no rastro do compartilhar o conhecimento, que é algo que envolve compaixão e generosidade, desenvolver empatia implica gradualmente descartar o egoísmo a ponto de ver a unidade por trás das diferenças individuais. Empatia tem tudo a ver com mindfulness. Ela depende de se abrir ao outro, focar nos denominadores comuns da humanidade, não julgar, estar presente na relação com o outro. Monges buddhistas recebem seu alimento, moradia e vestimentas da comunidade leiga. As pessoas doam aos monges para que eles possam ter mais tempo para se dedicar à prática e ao estudo. É um ato de generosidade da comunidade leiga. O monge ao se lembrar diariamente desse ato de generosidade, desenvolve gratidão e empatia, tornando-se mais aberto a entender as pessoas. A prática de mindfulness pode nos tornar mais humanos, menos egoístas, mais integrados com o todo da vida.
- Siga uma rotina: Não é preciso se tornar um obcecado por controle, mas um pouco de ordem e disciplina na vida ajudará a diminuir o estresse causado por um dia a dia caótico. Muitos monges buddhistas têm vidas com muitos afazeres, mas mesmo assim alguns momentos de seu dia a dia seguem bem uma rotina. Acorda-se cedo, medita-se, alguns cânticos matinais que relembram ensinamentos básicos de gratidão, interconexão e amorosidade, desjejum… Ter uma rotina significa colocar alguns marcos que nos lembrem de nos tornarmos conscientes do momento presente. A prática dos três minutos, os encontros regulares de mindfulness, os workshops e retiros, são também para ajudar a imprimir um ritmo de atenção e reflexão consciente em nossas vidas.
Na década de 80 tive a felicidade de conviver com um monge buddhista quatro vezes indicado ao prêmio Nobel da Paz. Maha Ghosananda acreditava que o lugar dos monges não era apenas nos mosteiros, mas diretamente nos campos de batalha. Ele dizia: “Como solucionamos um conflito, uma batalha, uma luta de poder? O que reconciliação significa realmente? Gandhi disse que a essência da ação não-violenta é que ela coloca um fim no antagonismo, e não nos antagonistas. Isso é importante. O oponente tem o nosso respeito. Implicitamente confiamos em sua natureza humana e entendemos que a má vontade é causada pela ignorância. Apelando para o melhor em cada um, conquistamos a satisfação da paz. Ambos nos tornamos fazedores da paz. Gandhi chamou isto de ‘vitória bilateral’. … devemos encontrar a coragem de sair de nossos templos e entrar nos templos da experiência humana, templos que estão cheios de sofrimento. Se escutarmos Buddha, Cristo ou Gandhi, não poderemos fazer nada a não ser isso. Os campos de refugiados, as prisões, os guetos e os campos de batalha se tornarão, então, nossos templos. Temos tanto trabalho a fazer”. (Passo a Passo: Meditações sobre a sabedoria e a compaixão)
No final das contas, modificações que fizermos para uma vida mais consciente não irão beneficiar somente a nós mesmos, mas a muitos outros.
* Ricardo Sasaki é psicólogo clínico e um dos professores do NUMI.