Uma realidade impressionante presente em todas as culturas é a presença do racismo. É impressionante porque é desprovida de qualquer base biológica, sustentando-se exclusivamente devido a convenções sociais e distorções psicológicas que vão se perpetuando por gerações. Seja a cor da pele, o formato ou a cor dos olhos, a altura, o estilo dos cabelos ou a região de nascimento, aquilo que seria tão somente exemplos da imensa variedade entre os seres humanos, torna-se um motivo para a segregação e o ódio, até chegar ao extremo da violência. No fundo, trata-se de medo e intolerância ao diferente, uma incapacidade de abrir seu campo familiar para uma maior diversidade.
Dissipar o racismo deve ser feito em dois níveis: o intelectual e o emocional. Na esfera intelectual devemos usar a visão correta, adquirida pela reflexão e estudo conscientes, que percebe de maneira clara que racismo e preconceito surgem a partir de construções sociais que têm uma história que é possível identificar. São fenômenos condicionados, com bases sociais e psicológicas. Entender essa rede de condicionamento ajudará a tratar da doença do racismo em um nível intelectual.
Na esfera emocional, porém, o desafio é bem maior, pois se trata de levar o entendimento ao nível das respostas sentidas, interior e profundamente, bem como das ações realizadas como consequência desses sentimentos. Trabalhar com o racismo na esfera emocional é mais difícil porque lá ele existe como padrões de resposta já introjetados e inconscientizados e, assim, fora do alcance mais imediato da consciência. Crenças e comportamentos já inconscientizados não são modificados pela simples determinação da vontade. Alguém pode entender intelectualmente que não é razoável ser preconceituoso e decidir que não o será, no entanto, como a consciência não iluminou as camadas mais profundas onde o racismo se enraizou, sua resposta mais visceral e emotiva contrariará sua decisão racional.
Adam Lueke e Bryan Gibson, pesquisadores do Departamento de Psicologia da Central Michigan University realizaram uma pesquisa em 2014 que mostrou que a maioria de nós faz suposições sobre as pessoas com base em diferenças superficiais na aparência. Para estudar esses preconceitos inconscientes eles usaram um teste chamado de teste de suposições implícitas ou IAT, que mede a rapidez com que as pessoas associam palavras negativas ou positivas — como “ruins” ou “boas” — com fotos de pessoas representando diferentes grupos.
É precisamente aí que a prática da consciência plena (vigilância ou mindfulness) mostra seu grande potencial. A prática regular e mais aprofundada de mindfulness, ao manter por um período prolongado a atitude de observação equânime e não-reativa, permite que conteúdos emocionais, por vezes surgindo emaranhados com sensações corporais e pensamentos aflitivos, tenham a oportunidade de vir à superfície e, ao se defrontarem com a luz da consciência, serem dissipados. Essa é uma experiência comum para todos aqueles que se dedicam a práticas mais intensas de mindfulness, mostrando o papel purificador da prática.
Mesmo um treinamento rápido em mindfulness já pode ser benéfico. O estudo citado acima dividiu um grupo de 72 estudantes universitários brancos em dois grupos, o primeiro ouvindo uma gravação de dez minutos de meditação mindfulness onde era pedido para se conscientizarem das sensações corporais (batimento cardíaco e respiração) e aceitar plenamente essas sensações e quaisquer pensamentos sem restrição, resistência ou julgamento, enquanto o segundo ouvia o mesmo narrador numa gravação sobre história natural. Os resultados após o teste IAT ser aplicado antes e depois do experimento mostraram que as pessoas que ouviram a gravação de 10 minutos de mindfulness demonstraram menor viés implícito contra negros e idosos. Se assim é com um treinamento tão curto, podemos imaginar o efeito que uma prática bem conduzida de mindfulness pode ter quando feita de maneira mais prolongada.
Mindfulness pode (e deve) ser praticada não apenas em relação aos processos internos psicológicos que se manifestam dentro de nós, mas também em relação ao que vemos e ouvimos. Nosso contato com o mundo externo, operado por meio dos sentidos, faz surgir pensamentos e sentimentos, entre eles, os de racismo e preconceito. Depende de nossa vigilância inteligente perceber isso surgindo, bem como perceber quais são nossas reações mais instintivas e imediatas. Depende de mindfulness trazer a resposta da compaixão, da amorosidade, da equanimidade, ao invés da resposta da discriminação, da injustiça, do conflito.
O racismo aparecerá em duas áreas, dentro de nós, fruto de reações condicionadas e armazenadas como padrões maus profundos, e o racismo que vemos se manifestando na sociedade, sejamos nós o objeto sofrente da atitude racista, seja como meros observadores da manifestação do preconceito ignorante. Ambas as áreas são importantes de serem lidadas. Como diz Rhonda Magee, uma advogada e professora de mindfulness: “É essencial que tenhamos compromissos pessoais. O problema é que em nossa sociedade temos uma espécie de escolha entre o pessoal e o social. No entanto, se pudermos nos abrir para nossa própria experiência, sabemos que somos sempre indivíduos e um mundo. E eu penso que o desafio é transmitir a mindfulness como uma prática para indivíduos em um mundo, em comunidades, em sistemas. Portanto, tem mais nuances de uma forma profunda, trazendo mindfulness para o foco central, que é de ser um suporte para indivíduos inseridos em comunidades e sistemas que são constantemente parte daquilo com o qual lutamos, o que nos coloca para enfrentar tipos específicos de sofrimento que devemos suportar. Então isso deve ser para nos aprofundar e nos afastar dessa tendência de focar apenas no indivíduo: é algo individual e comunitário, é ‘ambos’. E mindfulness, eu acho, porque abre nossa capacidade de ver as coisas através de múltiplas lentes de uma vez, tem uma habilidade profunda de nos ajudar e, nesse sentido, levar a cultura ocidental adiante. Porque eu acho que toda a nossa cultura sofre dessas falsas dicotomias, a incapacidade de ver o mundo através de múltiplas lentes de uma vez, lidar com esse tipo de complexidade, em um mundo assolado por problemas cada vez mais complexos”.
Há um campo imenso para o exercício das intervenções baseadas em mindfulness no campo social no sentido de diminuir os graves problemas de discriminação, preconceito, bullying e racismo em nossas sociedades, e assim colaborar numa cultura mais justa e saudável.
* Ricardo Sasaki é psicólogo clínico, diretor do Centro Nalanda e um dos professores do NUMI.