“Quando você acordar de manhã, diga a si mesmo: as pessoas com quem lido hoje serão intrometidas, ingratas, arrogantes, desonestas, ciumentas e grosseiras. Eles são assim porque não conseguem distinguir o bem do mal. Mas eu vi a beleza do bem e a feiura do mal, e reconheci que o iníquo tem uma natureza relacionada à minha — não do mesmo sangue ou nascimento, mas da mesma mente, e possuindo uma parte do divino. E assim nenhum deles pode me machucar. Ninguém pode me implicar na feiura. Nem posso sentir raiva do meu parente, ou odiá-lo. Nascemos para trabalhar juntos como pés, mãos e olhos, como as duas fileiras de dentes, superior e inferior. Obstruir um ao outro não é natural. Sentir raiva de alguém, virar as costas para ele: são obstruções”.
Essas palavras, ditas por Marcus Aurelius, um imperador romano que reinou entre 161 a 180 e que, surpresa surpresa, era também um filósofo. Vivendo numa era em que dirigentes políticos parecem fazer um grande esforço para manterem sua cultura no mínimo possível, pode nos causar espanto um imperador ser também filósofo, e não apenas um pensador qualquer, mas um proponente de uma das mais belas, mas também das mais exigentes maneiras de pensar o mundo, a filosofia estóica. Na reflexão acima, Marcus Aurelius nos traz uma joia do pensamento reflexivo e baseado na consciência plena. Vivemos numa época assolada por eventos incompreensíveis para uma mente sadia. Humanos lutando com humanos, homens matando mulheres, pais matando filhos e amigos, e filhos matando pais e colegas. Vemos violência, agressão e desonestidade por toda parte.
Marcus Aurelius se refere à incapacidade de distinguir o bem do mal. Tal dificuldade é exacerbada quando a própria cultura em que se vive incentiva a ignorância em vez da visão clara e da atividade reflexiva. Os exemplos dados por dirigentes políticos, culturais, administrativos, ao agirem de maneira obscurantista e desprovida de reflexão humana e consciente, reverberam pelo resto da sociedade. Ser arrogante, falso, propagar a violência, os ‘fakenews’, a enganação e o desvio (de verbas e de personalidade) torna-se, então, o novo ‘normal’. E as pessoas passam a segui-los. Em breve passamos a ver tudo isso, não apenas ‘lá em cima’, nas alturas do poder, mas nas pessoas que nos rodeiam, entre conhecidos, parentes, em nosso bairro, escola e ambiente de trabalho. O mal ignorante se espalha e segue o caminho de menor resistência.
E como se resiste a tudo isso? “… eu vi a beleza do bem e a feiura do mal, e reconheci que o iníquo tem uma natureza relacionada à minha”, diz nosso filósofo. Clara consciência de que a natureza humana é uma só, que o mal e o bem que vemos lá fora são também nossos, mas que ao contrário de apenas nos resignarmos a isso, podemos, começando dentro de nós, combater a feiura. Tanto mais o coração se sensibiliza e se torna consciente, mais fácil se torna evidente a distinção. Importamo-nos demais com a beleza e a feiura lá fora. Elas deveriam nos afetar muito menos do que geralmente o fazem. Tanto mais nos conectarmos com o bem dentro de nós, melhor estaremos em condições de colaborar com o mundo ao redor, sem precisar destruir ou explorar.
* Ricardo Sasaki é psicólogo clínico e um dos professores do NUMI.