O texto de hoje do blog é a transcrição de um encontro síncrono (ao vivo), ocorrido na manhã do dia 6/12/2022, no contexto do “Mindfulness no dia a dia com o NUMI“, tendo sido conduzido pelo Prof. Paulo Faleiro.
Olá! Hoje, aqui estamos para abordar um tema muito simples, muito singelo, que é tentar refletir sobre quem eu sou, de onde eu vim e para onde eu vou [risos]. As pessoas, geralmente, quando se interessam por mindfulness, quando vêm conhecer a abordagem, a prática, elas vêm com algumas intenções, alguns objetivos – e isso é natural. Um deles é o autoconhecimento, é procurar uma ferramenta para se conhecer melhor. Outro objetivo comum é buscar uma maior clareza sobre as coisas, um conhecimento sobre o mundo, sobre a vida, sobre as coisas com as quais a gente tem contato no dia a dia e, também, a busca de viver melhor ou conviver melhor. Então, mindfulness seria uma abordagem, dentre tantas, que poderia favorecer de alguma forma esse autoconhecimento, esse desenvolvimento de uma melhor clareza mental, maior clareza na observação, no olhar sobre as coisas, e uma busca de viver melhor e de conviver melhor. Então, se a gente quer buscar autoconhecimento, a gente precisa se deparar com essa pergunta; afinal de contas, quem eu sou, de onde vim e para onde vou?
Neste encontro de hoje eu gostaria de convidar a participação de vocês para iniciarmos esse bate-papo. Pensando de forma a trazer elementos irrefutáveis, se vocês forem confrontados com a pergunta “quem você é?”, como vocês responderiam? Quem é você? O que te define? De que você é constituída/o? A resposta deve conter elementos irrefutáveis, de forma que não haja dúvidas sobre essa sua resposta.
[Silêncio]
O grande silêncio talvez seja uma resposta muito boa, um grande vazio, um grande vácuo, mas acho que a gente pode tentar refletir.
Participante 1, Cláudia: “quando a gente quer ser superficial, para uma pessoa desconhecida, você costuma responder o seu nome, profissão, idade, onde mora, coisas absolutamente atóxicas. Mas, quando você pergunta o que eu penso que eu sou como pessoa, aí é uma resposta muito íntima, difícil e, primeiramente, nós precisamos descobrir”.
Paulo: Interessantíssimo! A Cláudia então está trazendo que existem diferentes camadas para a gente responder essa pergunta; algumas mais superficiais, outras mais profundas e, talvez, mais difíceis de serem acessadas. Há coisas que são bem clichês ou estampas, categorias, estereótipos, papeis, e outras coisas que são mais profundas e características de quem a gente é, o que é mais complicado.
Pelo chat, o Eduardo está dizendo que veio aqui para descobrir quem é. Eu espero que, no final do encontro de 30 minutos, você saia com todas suas perguntas respondidas, Eduardo. A Simone diz que é um ser vivo procurando ser feliz. A Cristina diz que é uma mulher buscando estar presente e atuante neste mundo.
Participante 2: “eu sou a Maria Amélia e sou uma pessoa feliz, mas com momentos angustiantes, momentos de ansiedade e com momentos alegres também. Agora, por exemplo, eu vivo um momento muito angustiante com a perda da minha irmã, mas eu sou feliz.
Paulo: obrigado Maria Amélia, pela sua participação. Então, você se vê como uma pessoa feliz, mas que passa por diversos tipos de momento, entre eles o que você está vivendo agora, que é um momento de angústia diante de uma perda significativa. Então, existe felicidade, existe angústia em quem você é, mais felicidade do que angústia, mas há momentos de angústia.
Adriana diz que é “uma pessoa aprendendo a bancar ser o que é”. A Cidoquinha diz “sigo tentando descobrir”. A Valéria diz que “com certeza mesmo só afirmo que sou um ser humano”.
Mas, o que é ser um ser humano? Essa é uma boa resposta: nós, diferente de outros animais, somos seres humanos. Somos um animal humano. Pegando um gancho no que a Valéria trouxe, talvez uma coisa que seja irrefutável e que faz parte de cada um de nós que está aqui presente é o nosso corpo. Nós precisamos desse corpo para estarmos aqui; então, de alguma forma, esse corpo dá base, sustenta quem a gente é. Alguém aqui está fora do corpo? Está em outra dimensão e veio passear por aqui?
Uma das coisas que nos constitui, então, é que vivemos dentro deste corpo e este corpo precisa de um tanto de coisas para viver. A primeira reflexão sobre quem eu sou talvez seria: este eu que vos fala, fala a partir de um corpo e, para viver, este corpo precisa de uma série de outras coisas. Precisa da chuva que está caindo, precisa do sol, precisa das plantas, precisa de outros animais, precisa de muitas condições para se sustentar materialmente, fisiologicamente. Uma parte dessa reflexão de quem eu sou pode começar por aí. Uma das coisas que me constitui é esse corpo e as sensações que, através dele, eu entro em contato, eu tenho acesso. Eu tenho cinco sentidos (eu particularmente tenho o privilégio de ter os cinco sentidos funcionando) e, através desses cinco sentidos, eu entro em contato com o mundo, com a realidade externa e com a realidade interna também, pois eu tenho interocepção e propriocepção, eu tenho sensações internas e externas do meu próprio corpo e, então, através dos meus cinco sentidos eu entro em contato com o mundo. Assim, este corpo é uma das coisas que me constitui.
Agora, este corpo é dotado de uma característica curiosa diferente talvez dos outros animais (a gente ainda não sabe exatamente como funciona para eles), mas este corpo desenvolveu um telencéfalo, um sistema nervoso complexo que me permite pensar, permite que eu tenha pensamentos, memória, linguagem. Então, outra coisa que me constitui são os pensamentos que me ocorrem e, através destes pensamentos, memórias – eu me lembro de coisas que já aconteceram na minha vida – e planos – coisas que eu imagino que eu possa vir a fazer, que eu desejo fazer, que eu entendo que vai ser bom que eu faça. Então, uma outra coisa, quando eu penso em quem eu sou, além deste corpo, é este processo cognitivo ao qual eu tenho acesso a vivenciar: pensamentos que são constituídos por linguagem; eu penso em português, vocês pensam em qual língua? Imagino que em português também. Mas quem fala muitas línguas, ou vive em outros países, passa a pensar ou a sonhar em outras línguas. Mas, além de linguagem, há também imagens, há outros elementos que constituem o mundo cognitivo.
Além disso, além de sensações e de pensamentos, eu também tenho emoções. Nossa colega falou sobre a angústia que está vivendo diante da perda da irmã; então, uma outra coisa que me constitui são emoções. E elas variam! Como ela falou, “geralmente eu me sinto feliz, mas neste momento eu estou angustiada”. Emoções também me dão uma referência, uma noção de eu: eu alegre, eu triste, eu angustiado, eu satisfeito, eu irritado; um tanto de coisas define quem eu sou. Irrefutável até aqui, certo? Alguém de vocês aqui não tem sensações a partir dos cinco sentidos? Alguém de vocês não tem pensamentos? Alguém de vocês não tem emoções? E as sensações físicas, os pensamentos, as emoções se interagem; esses elementos se interagem, certo?
Outro dia eu estava indo levar meu carro à oficina (ele praticamente mora na oficina) e eu estava devagar porque o carro estava sem embreagem. Uma pessoa atrás começou a buzinar e eu fiz sinal “pode passar, eu estou devagar mesmo”; a pessoa passou e buzinou de novo. Nesse momento, vêm pensamentos, vêm sensações como a escuta do barulho da buzina, vêm emoções de raiva e, de repente, o eu que se manifesta ali é um eu raivoso, que pode inclusive colocar a mão para fora do carro e fazer um gesto de comunicação violenta, para um sujeito que buzina e não está vendo o contexto etc. Então, é um conglomerado de pensamentos, percepções, emoções e, dali, surge um senso de eu. Agora, além desses três elementos, há também a questão de sermos seres em um contexto social e histórico. Não somos seres pairando por aí, soltos, como astronautas no universo, com pensamentos, emoções e sensações físicas, sem contato com nada e com ninguém. Nós somos seres que são atravessados por algumas características sociais, humanas, como por exemplo: gênero, identidade de gênero, raça, classe, crenças. Então, há uma série de questões que são culturais, sociais e históricas, que nos atravessam, e que podem também sustentar um senso de eu.
E, agora, vocês percebem que eu não estou falando apenas eu; estou falando de um senso de eu, pois, dependendo do momento, dependendo de como esses diferentes elementos se interagem, surge um senso de eu, um eu tranquilo, generoso, amoroso, compassivo, um eu raivoso, odioso, irritado, um eu sentindo sensações agradáveis e tranquilo, um eu sentindo dor e sendo completamente tomado por essa experiência de dor… Então, uma primeira reflexão importante a partir de mindfulness para a pergunta “quem eu sou” é tomar essa consciência de que esse eu que se diz “eu” é um senso de eu, dependente de uma série de causas iniciais. Eu gosto de pensar que é como um grande lego. O lego é estruturado por uma série de pecinhas: um navio-lego, uma espaçonave-lego, são formados por muitas pecinhas de diferentes tamanhos, diferentes cores e, aí, cria-se uma configuração, um senso de eu, e mindfulness vai nos ajudar a começar a observar as pecinhas que constituem o nosso senso de eu. Com isso, a gente passa a não se sentir tão absoluto, tão permanente, tão único, tão uníssono, como uma coisa só. Nós somos um conglomerado de coisas: pensamentos, sensações físicas, emoções, traços culturais, crenças… Então, este senso de eu, este eu que aqui está conversando com vocês, tem algumas características que mindfulness nos ajuda a perceber e a observar. Ele é transitório, ele não é permanente. E ele não é transitório só porque um dia eu vou morrer! O eu que há pouco estava tomando banho já passou, ficou lá no banheiro; agora há eu aqui diante do computador, daqui a pouco vai ter um eu brincando com os filhos, pois essa configuração é dinâmica. Então, uma outra característica do senso de eu é o dinamismo. Este senso de eu é dinâmico e, por isso, transitório. E ele é con-di-cio-na-do. Então, essas pecinhas do lego e a configuração na qual elas se encaixam dependem de causas e condições. Elas não surgem por si só, de forma completamente não relacionadas com o que está à minha volta. Elas são completamente interdependentes de um contexto sistêmico, estão dentro de uma teia de outros elementos que se interagem e este senso de eu, que é transitório e dinâmico, é, portanto, condicionado. Mindfulness nos ajuda a observar também esse processo de condicionamento. O que condiciona a aparição, o surgimento deste senso de eu com o qual eu me identifico? E vocês podem perceber que as discussões, as brigas, os conflitos, sejam no micromundo da família, das relações íntimas, sejam na geopolítica internacional, geralmente se dão em processos de auto afirmação de um senso de eu, transitório, mas que a gente sente que tem que defender e se agarrar nele como se tivesse defendendo a própria vida. Porque se aquilo que eu penso, aquilo que eu estou dizendo para você, se você não concorda comigo significa que você está querendo me aniquilar e, assim, este eu que vos fala está se sentindo agredido e, aí, eu preciso me defender, preciso diminuir o seu senso de eu, porque você me coloca em risco. É uma coisa de gente doida, se a gente parar para pensar com carinho, porque as coisas mudam. É claro que este senso de eu precisa colocar alguns limites para viver, para ter felicidade, para ter bem-estar. Nós somos, desde a ameba até os seres humanos, seres que buscam cuidar da sobrevivência, aproximando-nos daquilo que nos parece saudável e agradável e nos afastando do que é ameaçador. Mas é interessante, quando a gente se perguntar quem sou eu, começar a refletir sobre esses elementos, essas pecinhas do lego que nos constituem, momento a momento, e que não são permanentes. São transitórias.
Entrando na segunda pergunta “de onde eu vim”; eu pergunto: de onde a gente veio? Este senso de eu vem de onde? Bom, lembrando ainda sobre o corpo, este senso de eu que é sustentado por um aparato orgânico e biológico, vem de um processo evolutivo – que estudamos na escola – e houve todo um processo de complexificação deste organismo até chegar naquilo que a gente está vendo aqui. Saber disso muitas vezes nos decepciona pois, depois de tanta evolução, onde estamos com a cabeça de fazer o que fazemos, enquanto cultura, enquanto espécie?; mas estamos aqui e somos frutos de um processo evolutivo. De onde eu vim? Um primeiro elemento é: de uma evolução biológica. Um outro elemento que é importante a gente sempre estar atento é que este senso de eu surge, também, não só de uma evolução biológica, mas de todo um processo de cultura, de um desenvolvimento de uma cultura e de uma história; então, como eu me identifico enquanto sujeito está atrelado a um processo longínquo de uma história cultural.
Para além desses dois elementos, há outros dois aspectos que mindfulness, especialmente, nos ajuda a perceber em relação a de onde a gente veio [de onde veio esse senso de eu]. O primeiro é que este senso de eu é fruto, além de um processo biológico e de um processo social, também das nossas próprias ações no mundo. E a isso, talvez, a gente dê pouca atenção. Dependendo daquilo que eu faço, de como eu interajo no mundo, surge um senso de eu; e eu convido vocês a refletirem e a observarem isso ao longo desta próxima semana. Se eu estou no trânsito buzinando para qualquer pessoa que está devagar na minha frente, se eu estou agindo assim no mundo, o senso de eu que vai chegar no trabalho está diretamente relacionado com essa minha ação no mundo: um senso de eu raivoso, um senso de eu irritadiço, um senso de eu apressado (de repente a pessoa que estava atrás de mim podia estar com alguma urgência, levando alguém para o hospital), mas, enfim, a forma como eu vivo, a forma como eu ajo, através do meu corpo e através da minha fala, no mundo, tem a ver com “de onde eu vim”, de onde veio este senso de eu. Então, observem: quem eu sou neste momento? E se vocês percebem o que eu andei fazendo nos últimos momentos, ou nos últimos dias, será que isto está relacionado com este eu que estou sendo agora, que eu estou me sentindo agora? Isso é muito interessante, porque isso não depende dos presidentes do país x ou y; essa reflexão tem a ver com a nossa própria conduta. Então, uma observação atenta às nossas ações no mundo vai nos dizer de onde eu estou vindo. E uma outra coisa essencial e estruturante da prática de mindfulness, que nos convida a refletir sobre o quarto elemento relacionado a de onde eu venho, é perguntar-se “este senso de eu vem de um estado de presença ou de um estado de automatismo?” Porque esse aparato neurológico, esse aparato biológico que a gente tem, naturalmente precisou desenvolver uma série de automatismos para sobreviver – e que bom que ele desenvolveu isso! Mas nós podemos estar mais conscientes ou menos conscientes daquilo que estamos fazendo e este senso de eu pode estar numa esteira de processos automáticos e condicionados ou este senso de eu pode surgir a partir de um estado de presença.
Então, de onde eu vim? De uma maior ou menor presença e consciência, de um maior ou menor condicionamento a partir de automatismos emocionais, cognitivos, culturais, sociais, biológicos. Assim, uma reflexão interessante é perceber esse “de onde eu vim” em função das minhas ações no mundo, de um maior ou menor estado de presença e de consciência, de maior ou menor reatividade; este senso de eu que está aqui falando é mais reativo ou mais ativo? Ele é livre para escolher sua ação e responsável por essas escolhas e seus efeitos ou ele é refem de uma inconsciência, de uma ação irrefletida? Essa é uma reflexão sobre de onde vim.
E para onde eu vou? Se eu acabei de observar de onde eu vim, para eu responder para onde eu vou, basta olhar para essas mesmas coisas. Assim, dependendo das minhas ações no mundo, aqui e agora, e dependendo do meu estado de presença e consciência, dos estados mentais que eu estou cultivando nesse momento, eu já sei mais ou menos para onde eu vou. Este senso de eu do futuro será uma função desse estado de presença, dessas ações e dos estados mentais que eu estou cultivando agora. Faz sentido?
Assim, mindfulness nos ajuda a refletir sobre “quem eu sou, de onde eu vim e para onde eu vou” a partir da noção de que este senso de eu é transitório, é dinâmico, é condicionado, as nossas ações no mundo e os nossos estados mentais são elementos estruturantes deste senso de eu e a gente pode cultivar algum grau de consciência e de desenvolvimento de características mentais que sustentem um senso de eu que seja sadio, que seja saudável para a gente, para as pessoas que nos circundam e para o mundo. Esse era o recado de hoje, espero que suscite algumas reflexões. Para concluir, que este senso de eu que aí está seja feliz, esteja livre do sofrimento e encontre as causas da felicidade. O senso de eu que aqui está agradece e se despede.
* Este texto foi gentil e generosamente transcrito, a partir da gravação da palestra, pela amiga Malú Viana.
.: Paulo Faleiro é psicólogo clínico, especialista na abordagem sistêmica, mestre em psicologia social, fundador e um dos professores do NUMI.