Altas horas da noite, estaciona um carro na frente de sua casa ou de seu prédio com o volume do rádio no máximo. E começa a buzinar porque provavelmente o motorista acha dá muito trabalho sair do carro para tocar a campainha da pessoa com quem ele deseja falar. Talvez a pessoa que faz isso tenha boas intenções. Ela está indo ou chegando de uma festa, curtindo com os amigos, uma música gostosa que ela gosta. Porque não compartilhar a música gostosa com todo mundo? Com as pessoas de toda a rua? Não se trata de decidir se ela tem uma boa intenção ou não. Quando pensamos, não basta pensar apenas, mas pensar de maneira consciente, considerando o contexto da situação em que se esteja. Na vida, você não vive sozinho.
Quando pensamos de forma consciente, vemos que não é só uma questão de o que você gosta e o que você sente prazer. A questão é mais sobre como todos podem fazer o que acham bom, o que gostam e sentem prazer, mas sem que isso seja feito às custas do sofrimento e privação dos demais. Como podemos estar bem uns com os outros? Ou será que nosso tipo de felicidade é somente aquele que pode acontecer em detrimento da felicidade do outro?
Pensamento consciente chama nossa atenção para a cadeia social de relacionamentos em que estamos envolvidos. Chama a nossa atenção para cuidar de detalhes. Cuida do como podemos ser menos disruptivos em nossas relações. Como você pode afetar positivamente, e não negativamente, toda a rede de relações da qual você faz parte? Isso envolve atender a verdade das outras vidas. Elas existem. Nós existimos neste corpo, nesta mente; coisas, situações e espaços existem neste momento, e as outras vidas também existem. E esse é um primeiro fruto da introspecção que é fundamental.
Olhar para nós mesmos de forma verdadeira é nos olhar em relação. Por exemplo, aquele rapaz do carro talvez perceba que apesar da boa intenção de espalhar o heavy metal ou o funk para toda a rua e que isso é grande prazer e que todos os amigos dentro do carro estejam contentes, ele pode perceber que existem outras pessoas que não estão contentes por serem acordadas a 1 da manhã. Ele começa a notar a qualidade de suas intenções num contexto maior. Ele começa a perceber que intenções vêm acompanhadas de outros fatores. Fatores de atenção, de consciência, de consideração pelo outro. Ele se torna mais prudente. A prudência era uma das grandes virtudes do passado, mas hoje talvez muitos nem saibam o significado da palavra. Raramente a escutamos. A prudência tem a ver com essas coisas. Como que você entra no espaço, como que você se relaciona. Imprudência, descaso, desconsideração, inconsciência, são questões relacionadas. Podemos ver como isso tudo tem tão a ver com mindfulness, com plena consciência?
Olhar para dentro significa ver o bom e o mau, o positivo e o negativo em nossas ações. Na atitude contemplativa, começamos aceitando completamente todos os seus aspectos. Se de imediato começamos com um julgamento, definimos a direção de nosso pensamento. “Isso não é bom”, e o próximo passo será “Isso eu não tenho”. Começaremos a esconder aquelas facetas que não gostamos em nós: o famoso lixo embaixo do tapete. A atitude contemplativa é no sentido de você entrar na casa, levantar os tapetes e reconhecer que existem atitudes, pensamentos e emoções que você quer esconder.
Mas o trabalho não pode parar por aí. Não basta reconhecermos e estarmos totalmente abertos, aceitando o momento. Logo isso pode se transformar em um “eu sou assim mesmo”, “me aceite do jeito que eu sou”, “fazer o quê? Eu sou assim”. Não basta você levantar os tapetes, reconhecer que tem aspectos pouco favoráveis, pouco agradáveis na sua personalidade, e parar por aí. Não é uma questão de você deixar a sua casa totalmente bagunçada em todos os aspectos e falar “é assim que eu sou”.
O segundo momento da atitude contemplativa é pouco a pouco ir cuidando desses aspectos. Quando fazemos isso, quando somos capazes de desenvolver a introspecção em relação a nós mesmos, em relação as coisas, em relação às outras vidas, nesse momento começamos a ter condição de viver uma vida mais plena. E essa vida plena é no final das contas o objetivo deste caminho.
.: Ricardo Sasaki é psicólogo clínico, diretor do Centro Nalanda e um dos professores do NUMI.