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A nazuna floresce

Existe um verso de um grande poeta japonês chamado Matsuo Bashō, o mais famoso poeta japonês. Ele viveu no século XVII. Famoso por fazer haikais, pequenos versos em três linhas e dezessete sílabas, ele tem um poema que diz o seguinte:

                Olhem cuidadosamente

                a nazuna floresce

                ao longo da cerca

                ah ah

Nazuna é uma flor. E é uma florzinha tão pequenininha, tão pequenininha, que geralmente as pessoas passam e nem notam. Muito, muito pequenininha. Aqui ele expressa duas coisas fundamentais. Primeiro, a importância do detalhe, do olhar cuidadoso, do olhar meticuloso, quase um olhar fotográfico. Há certas fotografias que nos trazem justamente isso, um olhar especial. Existem fotógrafos bons, que tiram fotos maravilhosas, com máquinas potentes que conseguem realmente captar uma cena. Mas existem outros que conseguem capturar o que não está na cena, e esses são os fotógrafos realmente especiais. Comece a observar certas fotografias onde a questão não é o que está, mas o que está além.

Como você pode captar a nazuna? Captar aquela florzinha que ninguém viu? Não precisamos usar uma super objetiva, colocar um super zoom e mirar naquela florzinha. É mais sobre cuidar do ângulo, cuidar daquele espaço não dito que fará que aquele que olha para a fotografia sinta algo, como se ele estivesse lá, naquele ângulo. Matsuo Bashō coloca nesse verso a atenção ao detalhe. Como podemos olhar para os detalhes de nossa vida? O que não estamos olhando? Onde estão as nazunas? Onde estão as belezas escondidas? Onde também estão os muros que tapam a nazuna?

O verso evoca também, que além desses cuidados, dos pequenos detalhes das coisas, Bashō conseguiu perceber que apesar de ela ser pequena, apesar de todos acharem aquilo insignificante, ainda assim a nazuna florescia ao longo da cerca. E quando ela o faz, faz 100%. Ela não esconde, ela não obscurece, ela não segura nada. Ela não se importa com a sua aparente pequenez e aí então floresce 100%, sem comparações ou julgamentos. E só o olhar de Bashō consegue perceber isso, só o olhar contemplativo, introspectivo, consegue perceber esse 100% de dedicação e admirar-se com isso.

                Olhem cuidadosamente

                a nazuna floresce

                ao longo da cerca

                ah ah

Devo a compreensão deste verso aos ensinamentos de um querido professor que tive, um professor americano japonês que eu tive a honra de conhecer, passar um tempo e me aprofundar em sua linhagem, Gyomay Kubose. É preciso alguma atenção, alguma reflexão para que possamos usar aquilo que nos ocorre como fonte de uma perspectiva enriquecida de nossas vidas. A atenção contemplativa é imensamente importante porque sem atenção não há ensinamentos e não há aprendizado. Não adianta quantas palestras ouvimos, quantos livros que lemos. Sem atenção não conseguiremos ouvir o que é necessário. A fotografia especial não consiste no que está lá na fotografia, mas é o que está além. Só palavras e objetos não nos ajudam. Sem atenção não entendemos nada. Sem atenção não entendemos nada sobre o que é o cuidado com os outros, cuidado com a nossa rede, o cuidado com a nossa mente, o cuidado com o nosso corpo, e isso é uma coisa que a introspecção traz.

A partir disso podemos nos perguntar qual é o caminho que eu sigo? E isso não tem nada a ver com meditação, com buddhismo, com religião ou com filosofia. Qual é o caminho que você segue na sua vida? Quais são os princípios que você acredita? Qual a diferença entre os princípios que você acredita e os que você segue? Qual é o tipo de caminho que você anda? Existe diferença naquilo que você fala e naquilo que você faz? Você consegue ser sincero o suficiente? Não apenas com o outro, mas principalmente com você? Você consegue fazer isso? Seu caminho é todo asfaltado ou feito de borracha? Bastante artificial e sem vida? Ou você anda num caminho de verdade? Num caminho que tem pedras, grama, orvalho. Qual é o caminho que você escolhe trilhar? Quando  voltamos, aprendemos ou retomamos para a vida contemplativa, novamente temos esta oportunidade de encontrar ou reencontrar o ritmo da vida, andar passo a passo e ser o que somos. Agora podemos sentar um pouco, olhar para a respiração suavemente, olhos fechados, olhando para a nossa mente, para o nosso corpo, a respiração acontecendo, conscientes da nossa respiração, de nós mesmos, do espaço que ocupamos, conscientes de que não sentamos sozinhos mas sentamos com todos.

.: Ricardo Sasaki é psicólogo clínico, diretor do Centro Nalanda e um dos professores do NUMI.

4 comentários em “A nazuna floresce”

  1. Ótimo iniciar a primavera com esse poema de Bashô. Já o conhecia, mas sempre bom rememorar. Há sempre detalhes que fazem de cada primavera algo único.
    Obrigado prof. Ricardo!

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