Porque as mulheres precisam de autocompaixão feroz

A compaixão nem sempre é suave e gentil; às vezes significa ser forte e feroz

POR KRISTIN NEFF | 17 de outubro de 2018

Nas recentes audiências de confirmação do Senado para a Suprema Corte dos EUA, a Dra. Christine Blasey Ford levantou-se para contar ao mundo suas memórias sobre a maneira humilhante e sexualmente agressiva que ela disse que o juiz Brett Kavanaugh a violou quando adolescente.

Seu ato teve uma coragem incrível. O que realmente me impressionou, no entanto, foi o comportamento da própria Dra. Blasey Ford. Enquanto falava com confiança ao discutir sua área de especialização – a psicologia do trauma -, outras vezes falava como uma jovem que precisava aplacar todos os homens poderosos ao seu redor para que eles gostassem dela. Isso não diminui a coragem que ela demonstrou por estar lá – foi incrível -, mas ela claramente sentiu que precisava ser suave e doce para ser ouvida.

E provavelmente ela estava certa. Se tivesse demonstrado sua justa indignação por Kavanaugh atrapalhar sua vida, provavelmente ela teria sido desacreditada. Embora a raiva de Kavanaugh por ter sido acusado “indevidamente” tenha sido comemorada por muitos senadores do sexo masculino e indiscutivelmente tenha levado a sua validação, Ford foi autorizada a mostrar sua dor por ter sido vítima, mas não mais do que isso.

O fato é que as mulheres não podem demonstrar raiva para se defenderem. Quando as mulheres encontram dor e sofrimento — nos outros e em nós mesmas — espera-se que respondamos com gentileza, ternura e cordialidade. Mas hoje, precisamos de uma resposta diferente: autocompaixão feroz.

A compaixão visa aliviar o sofrimento e pode ser feroz, bem como terna, “yin” e “yang” — a mãe gentilmente confortando seu filho chorando ou a mãe urso protegendo ferozmente seus filhotes. Ideais femininos precisam incluir raiva e determinação se quisermos cuidar com efetividade de nós mesmas e uns dos outros, indo além do domínio masculino e fazendo a diferença nas questões que enfrentamos em nosso mundo hoje.

O yin e o yang da autocompaixão

De acordo com o meu trabalho, os três componentes principais da autocompaixão são gentileza para consigo, humanidade comum e atenção plena ao sofrimento. Eles se manifestam na autocompaixão do “yin” como presença conectada e amorosa. Gentileza para consigo significa que cuidamos ternamente de nós mesmas quando sentimos dor. A humanidade comum envolve reconhecer que o sofrimento faz parte da condição humana compartilhada. A consciência plena nos permite estar com e validar nossa dor de maneira aberta e com aceitação. Quando acolhemos nossa dor dessa maneira, começamos a nos transformar e a nos curar.

Quando a maioria das pessoas pensa em autocompaixão, elas imaginam a versão yin. Mas a autocompaixão também tem uma forma “yang”. Com a autocompaixão yang, os três componentes aparecem como uma verdade feroz e empoderada. Gentileza consigo mesma significa que nos protegemos ferozmente. Nós nos levantamos e dizemos: “NÃO! Você não pode me ferir dessa maneira”. A humanidade comum nos ajuda a reconhecer que não estamos sozinhas; não precisamos mergulhar de cabeça na vergonha. Podemos estar juntas com nossos irmãos e irmãs na experiência de sermos feridos e, por conseguinte, tornarmo-nos fortalecidas. Eu também! E a consciência plena se manifesta como ver a verdade claramente. Não podemos mais escolher evitar ver ou contar para não abalar a estrutura. A estrutura precisa ser abalada.

Quando acolhemos nossa dor com uma verdade feroz e empoderada, podemos falar e contar nossas histórias, para proteger a nós mesmas e às outras de serem feridas.

Na autocompaixão yin, nos acolhemos com amor — validando, acalmando e confortando nossa dor para que possamos “estar” com ela sem sermos consumidas por ela. Na autocompaixão yang, agimos no mundo para nos protegermos, prover o que precisamos e motivar a mudança para alcançar todo o nosso potencial.

Pesquisas indicam que ambos os aspectos da autocompaixão levam ao bem-estar. A autocompaixão nos permite “estar” conosco ternamente (yin), mas também tomar medidas (yang), para que possamos nos apoiar e prosperar. Por exemplo, a autocompaixão yin reduz a depressão e a ansiedade substituindo o autojulgamento pela autoaceitação. Quando nos acalmamos e nos confortamos em meio a emoções difíceis, não nos perdemos mais no buraco do coelho da vergonha e da inadequação, mas nos refugiamos na segurança do nosso próprio calor e cuidado. Como consequência, nos tornamos mais felizes e mais satisfeitas com nossas vidas.

Ao mesmo tempo, a autocompaixão yang nos permite lidar ativamente com os desafios da vida. Seja combate, divórcio, câncer ou ser mãe de uma criança com necessidades especiais, a autocompaixão nos fornece a resiliência necessária para permanecermos fortes sem ficarmos sobrecarregadas. A autocompaixão yang nos motiva a continuar mesmo após o fracasso e contratempos, proporcionando coragem e perseverança diante das adversidades.

Equilibrando ternura e ferocidade

Papéis tradicionais de gênero permitem que as mulheres sejam yin, mas se uma mulher é muito yang – se ela fica com raiva ou feroz – as pessoas muitas vezes ficam assustadas e as chamam por alguns nomes (a palavra com P vem à mente). Homens podem ser yang, mas se um homem mostra muita vulnerabilidade, ele corre o risco de ser expulso do clube dos meninos. Em muitos aspectos, o movimento #MeToo pode ser visto como o surgimento coletivo do yang feminino. Estamos finalmente falando para proteger a nós mesmas, nossas irmãs, nossas filhas e nossos filhos.

Se estivermos sem yang, continuaremos a ser silenciadas, abusadas, desconsideradas e desempoderadas. Se somos yang sem yin, no entanto, corremos o risco de nos tornarmos hipócritas, de esquecer a humanidade dos outros, de demonizar os homens. Como uma árvore com um tronco sólido e galhos flexíveis, podemos ficar fortes enquanto ainda abraçamos outros como parte de um todo interdependente. Precisamos de amor em nossos corações para não perpetuarmos um ciclo de ódio, mas precisamos de ferocidade para que não deixemos as coisas continuarem em seu atual caminho danoso.

É desafiador manter a presença amorosa e conectada junto com a verdade feroz e empoderada porque suas energias são muito diferentes, mas precisamos fazê-lo se vamos efetivamente enfrentar o patriarcado, o racismo e as pessoas no poder que estão destruindo nosso planeta. Precisamos de ambos simultaneamente, como defendido por grandes líderes como Mahatma Gandhi, Madre Teresa e Martin Luther King Jr.

Como vamos fazer isso? Estou descobrindo por mim mesma. No passado, eu tendia a ser yin em alguns momentos e yang em outros, mas tenho encontrado dificuldade nesta integração. Minha prática de autocompaixão me ajuda a não me importar com o que as outras pessoas pensam sobre mim, porque eu posso me fornecer a legitimação e apoio que eu preciso. Mas quando meu yang está em pleno vigor, às vezes eu não penso o suficiente sobre outras pessoas e os efeitos do meu comportamento sobre elas. Estou trabalhando duro para honrar e integrar ambas as energias.

Eu descobri que é útil reconhecer o que está sendo ativado no momento, então dar um tempo para ter certeza de que a outra energia também está presente. Quando estou sendo carinhosa comigo mesma ou com os outros de uma forma yin, por exemplo, eu conscientemente pergunto se a força yang é necessária. E quando sinto a energia yang surgindo, tento ter certeza de que eu tenho yin suficiente, para me lembrar que o uso da força é mais eficaz quando é combinado com ternura. Eu cometo muitos erros e muitas vezes não vejo claramente, mas sei que este é o único caminho a seguir.

Espero que, em breve, mulheres como a Dra. Blasey Ford possam estar totalmente empoderadas, para temperar sua doçura com aço. Espero que todas possamos invocar a ternura e a ferocidade que é nosso direito de nascença. Se vamos ter alguma chance de alcançar a igualdade, as mulheres terão que acordar, dizer não, e desistir de receber a aprovação dos homens. Precisamos incorporar a verdade feroz e empoderada. Muitos não vão gostar, mas tudo bem. Podemos curar nossas feridas com uma presença amorosa e conectada, dando a nós mesmas o que precisamos.

Embora seja crucial que tomemos medidas para mudar o sistema político, o primeiro lugar para começarmos é por nós mesmas. Da próxima vez que estivermos no supermercado com uma pessoa rude no caixa, ou em um conflito no trabalho, ou confrontadas com um difícil desafio de vida, precisamos nos voltar para dentro e chamar a autocompaixão yin e yang de forma equilibrada. Precisamos aprender a usar a força do cuidado para mudar a nós mesmas e ao nosso mundo. A hora é agora.

Este artigo foi expandido de “Why Women Need Fierce Self-Compassion” on Self-Compassion.org e publicado originalmente na revista online Greater Good, do Greater Good Science Center da UC, Berkeley. Sendo aqui traduzido sob permissão pela Equipe NUMI.

1 comentário em “Porque as mulheres precisam de autocompaixão feroz”

  1. Oi Ricardo,
    Fico feliz em compartilhar que o livro “Autocompaixão feroz”, da Kristin Neff, será lançado em português no mês de maio (2022). Ele já pode ser comprado em pré-venda no site da Lúcida Letra (www.lucidaletra.com.br)

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