Talvez seja seguro dizer que a maior parte dos entes humanos desejam viver em paz e harmonia, desejam viver sossegados. Pois, para simplesmente viver, segundo relatam antropólogos e historiadores, o ser humano precisou se organizar em grupos, em comunidades. E aí já se desponta o desafio: se é preciso estar em grupo para sobreviver, estando em grupo, é complicado atingir e sustentar a paz e a harmonia. Temos observado isso ao menos ao longo dos últimos seis mil anos. Bem, na busca de funcionarmos minimamente em paz e harmonia enquanto grupos humanos, lançamos mão da estratégia de definir e observar alguns códigos de conduta. Na escola dos meus filhos eles são chamados de “combinados”. Tá combinado que não pode morder o coleguinha diante de um conflito, que cada um leva seu prato para a cantina depois do almoço, que é preciso dar descarga na privada depois de fazer xixi ou cocô, que cada um será respeitado pelo seu jeito de ser (tamanho, cor, peso, habilidades, inabilidades), não sendo hostilizado por isso, etc., etc., etc. A gente vai crescendo e os contextos e listas de códigos de contuda também vão se somando. Na pré-adolescência, eu me lembro dos adultos empenhados em ensinar os dez mandamentos enviados por Deus. Eles ficavam um tanto sem gingado para explicar o nono: “não desejarás a mulher do próximo”. Me custou alguns anos para compreender o quanto de guerras, mortes e tragédias prescederam o estabelecimento de uma série de códigos de conduta, de pactos sociais, religiosos ou laicos, destinados a buscar favorecer o mínimo de paz e harmonia, ao menos para alguns subgrupos, dentro de grandes agrupamentos humanos.
Na quinta sessão do programa introdutório em mindfulness que oferecemos no NUMI , o MVC – Mindfulnes para o Viver Consciente, abordamos a tomada de consciência em relação às atitudes, às ações no mundo. Muitos poderiam indagar o que mindfulness ou meditação teria a ver com a conduta e com a ética. Nas tradições contemplativas, de onde a prática milenar de mindfulness foi trazida para o ocidente, o treinamento da conduta moral e ética é um elemento tão estruturante quanto o treinamento mental em si (desenvolvimento de observação vigilante, estabilidade, foco, clareza). Dentro desse treinamento, somos convidados a observar, refletir e compreender, dentre outros elementos, a importância ética da verdade. Isso leva ao compromisso e à conduta de não se falsear a realidade, por exemplo levando intencionalmente alguém a ter uma percepção ou noção equivocada sobre uma dada situação através de uma mentira. Ao praticar mindfulness, almejamos estabelecer um contato o mais direto possível com a experiência percebida, o mais limpo possível de vieses e pré-julgamentos. Não seria coerente e nem ético agir no sentido de dificultar ou impedir esse mesmo contato e acesso a outrem.
Nessa sessão, dirigimos também a atenção, desenvolvida através da prática regular de mindfulness, à observação de que determinadas atitudes e condutas surgem de, expressam e/ou retroalimentam correlatas categorias de estados mentais. Uma fala ou ação corporal ríspida e agressiva denota um estado mental aversivo. Uma furada de fila no trânsito para se chegar mais rápido a um compromisso reflete um estado mental aquisitivo. Um discurso mal estruturado, acelerado ou frívolo tem por base um estado mental agitado e confuso. Aprendemos, então, que o cultivo de estados mentais saudáveis está íntimamente ligado à expressão de condutas que favorecem o nosso próprio bem-estar, assim como o do meio em que estamos inseridos.
Pois, na semana passada, vivenciei uma situação que, dentre tantas outras, infelizmente, sinaliza o óbvio: o quanto nossa cultura navega na direção contrária ao cultivo de estados mentais saudáveis e de condutas éticas. Minha conta bancária sofreu uma tentativa de invasão eletrônica. Fui orientado a ir pessoalmente à agência para redefinir as senhas de acesso. Ao concluir o processo, o atendente me informou que minha conta não contava com o serviço adicional de segurança para o cartão, que é uma espécie de seguro oferecido pelo banco. Eles cobrem o valor de R$25.000,00, no caso de roubo ou extorsão com o uso do cartão e oferecem ao cliente R$10.000,00 no caso de roubo do telefone celular. O serviço, seguiu o atendente/vendedor, custa apenas R$20,00 por mês, “pouco mais que R$200,00 por ano. Podemos incluir agora no seu pacote?”. Surpreso, eu quis esclarecer se eles pagavam R$10.000,00 para os clientes caso os seus telefones fossem roubados. Ele reafirmou que sim, mas desde que o cartão do banco fosse roubado junto com o aparelho. Na sequência, com a ajuda cheia de motivação da atendente ao lado, ele e ela me disseram que, caso eu tivesse o celular roubado, sem o cartão ser levado junto, bastava eu bloqueá-lo, eliminá-lo e informar no boletim de ocorrência policial que o cartão bancário havia sido roubado junto com o telefone. Isso seria suficiente para eu receber o valor do seguro. Agradeci a oferta pelo produto/serviço e tratei de sair logo do banco, antes que alí dentro mesmo alguém tentasse levar o meu celular, o meu cartão, a minha carteira, a minha dignidade. Caminhando pela rua, não pude deixar de refletir que, pela forma despreocupada e lépida com que eles me abordaram em seus postos de trabalho, aquela orientação de adotar uma conduta inverídica deveria partir não só do interesse deles em bater a meta de vendas do mês, mas do próprio banco. Só R$20,00 de cobrança na conta de milhões de correntistas faz o verão dos banqueiros…
Se eu estivesse de fato mindful, talvez teria lido os sinais e não seria pêgo de surpresa. Ao ser questionado pelo mesmo bancário se desejava algo mais, o senhor que havia sido atendido logo antes de mim sacou a seguinte demanda: “você tem sossego aí para me dar?” Todos riram diante da anedota. Notadamente, sossego é algo do qual nossa sociedade individualista e de consumo se afasta mais e mais. Algo de valor tão incomensurável que banco algum teria a estrutura de segurança suficiente para guardar e, muito menos, seria artigo generosamente oferecido aos correntistas.
.: Paulo Faleiro é psicólogo clínico, especialista na abordagem sistêmica, mestre em psicologia social, fundador e um dos professores do NUMI.
Que loucura! Instruções recebidas no banco para enganar o próprio, mas que acabam beneficiando os banqueiros e tornando seus clientes ladrões! 😳😔