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Reinos de Renascimento

 

Em minhas leituras a respeito da psicologia buddhista percebo que um dos mais importantes cultivos é o da visão ou perspectiva correta. O adjetivo aqui não indica um dogma ou postulado a ser cegamente aceito, introjetado e seguido. Refere-se a um olhar atento e aberto em relação à realidade e à natureza das coisas, o mais livre possível de pré concepções e julgamentos, voltado a uma justa compreensão dos fenômenos. É comum lançarmos um olhar raso sobre as coisas, bem como projetarmos sobre aquilo que se manifesta diante de nós todo um conjunto de convicções, crenças e memórias advindas de outras experiências.

Pois bem, quando entrei em contato pela primeira vez com as alegorias dos seis reinos de renascimento buddhistas que compõem o samsara (reino dos seres do inferno; reino dos fantasmas famintos; reino animal; reino humano, reino dos semi-deuses e reino dos deuses), geralmente ilustradas e presentes em templos na figura da Roda da Vida, ao fitar a crença de se morrer e se renascer em cada um desses reinos dependendo dos méritos e deméritos de vidas passadas, o fiz com um olhar respeitoso (em relação às tradições e fé de outras pessoas e povos). Mas, em foro íntimo, o fiz também através do mesmo ceticismo crítico com o qual observo o mito do Gênesis cristão, a concepção “sem pecado” de Jesus ou qualquer explicação cabal e transcendental sobre o mistério da existência. Ocorre que (tenho aprendido com bons professores) um olhar superficial, literal e descontextualizado em relação a qualquer ensinamento de tradições contemplativas jamais pode alcançar as possíveis riquezas ali presentes e generosamente disponíveis.

Estou de férias com a família no sul da Bahia, num lugar de rara beleza natural. Quando saímos de uma rotina à qual estamos habituados, principalmente quando não a substituímos prontamente por outra rotina, também cheia de programas e afazeres, todo um novo mundo de experiências e surpresas se abre diante de nós, a cada dia, a cada momento. As situações e dinâmicas a nossa volta, cada uma, são convites. Convites a adentrarmos determinados reinos de estados mentais, passando a enxergar e a sentir o mundo, as pessoas e a nós mesmos a partir de suas lentes. No preciso momento em que aceitamos um desses convites, via de regra sem nos apercebermos de nada, pronto. Foi concebido e rapidamente vem à luz alguém com quem passamos a nos identificar, a quem chamamos de eu e a quem geralmente estamos prontos a defender com unhas e dentes. Pode ter vida bem curta ou até sobreviver por alguns dias, então perecendo e dando lugar a outro eu, fruto de um novo convite, aceito de forma igualmente inadvertida, que terá a mesma sina e, assim, sucessivamente, num processo de renascimentos pra lá de cansativo, para usar um eufemismo.

Outro dia fui a uma praia linda! O acesso até ela, como a muitas outras na região, passa por uma grande propriedade particular. Nessa, é possível ao turista pagar para chegar à praia e à barraca de comes e bebes. Consumação mínima cara, assim como qualquer produto no cardápio. Entrei no reino dos Deuses, pensei comigo, com um dedinho de sarcasmo. Dediquei-me a viver bons momentos com as crianças e família, em meio à natureza. De volta à mesa, antes de partir, não pude deixar de observar o desfile de vários dos reinos descritos pelos buddhistas ao meu redor. Gestos e ações indicando cobiça, luxúria, gula, vaidade, raiva, ansiedade, desejo sedento, torpor. Ao mesmo tempo, aqui ou alí, pude também testemunhar a ternura, a amorosidade, o carinho e a presença. Cenas de cada um dos reinos de renascimento se expressando diante dos meus olhos, bem como de alguns dos estados celestiais, gerando compaixão, equanimidade, alegria apreciativa e insights.

Convites não são bons nem maus. Cada um leva a determinadas paisagens, onde são plantadas determinadas sementes. Após germinarem, dão frutos. Não pode ser diferente. O plantio é livre. A colheita, compulsória. O que me parece relevante é estarmos lá, acordados e atentos quando os convites nos chegam para, então, termos a liberdade de escolher como responder. Mindfulness é a parte do caminho do bem viver relacionada com esse estado de presença vigilante. É uma habilidade cultivável. Menos sedutora do que muitos dos convites, certamente, mas capaz de nos ajudar a abrirmos portas muito mais pacíficas e generosas.

 

.: Paulo Faleiro é psicólogo clínico, especialista na abordagem sistêmica, mestre e doutorando em psicologia social, fundador e um dos professores do NUMI.

1 comentário em “Reinos de Renascimento”

  1. Belíssima reflexão. Muito obrigado. Cada vez mais me conscientizo q está tudo na mente, no sentido oriental , ou budista , q não a separa do corpo. Grato mais uma vez

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