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Não há mindfulness sem buddhismo?

Vez ou outra ouvimos alguém reclamar daqueles que estão tirando mindfulness do contexto buddhista e oferecendo uma prática laica e enganadora. É raro, mas acontece. E, sendo assim, seguem-se alguns esclarecimentos.

Mindfulness tal como entendida e praticada atualmente com certeza tem de maneira preponderante bases buddhistas, mais especificamente vindas da tradição theravada do Sudeste Asiático. Suas práticas mais comuns, como os treinamentos atencionais com respiração, caminhada, escaneamento corporal, e seus elementos teóricos como os de abertura, não-julgamento e níveis de atenção, são elementos amplamente encontráveis nos retiros de meditação das escolas buddhistas que ensinam métodos meditativos, e isso não é segredo algum.

Se, porém, os métodos usados em mindfulness são encontráveis no buddhismo, aquilo que almejam desenvolver não são objetivos sectariamente buddhistas, mas qualidades humanas que independem de religião ou filosofia, como uma atitude consciente, ética, amorosa e justa diante da vida. Tais qualidades são encontradas em todas as regiões do mundo, em pessoas sem religião e também dentro de outras religiões diferentes do buddhismo. Pensar que quando se tira o buddhismo (naquilo que ele tem de específico e característico) do conceito de mindfulness isso automaticamente reduz mindfulness a uma prática sem base é semelhante a dizer que alguém não poderia praticar o amor e a caridade sem ser cristão (que é como os fundamentalistas pensam), ou que o árabe só deveria ser falado por muçulmanos.

Ser uma prática laica não torna uma atividade sem base. A medicina é também uma prática laica que almeja servir com seus métodos todos os indivíduos, sem que para isso eles devam comungar dos ideais filosóficos atenienses (lembram-se de Hipócrates, “pai da medicina”, não?) para que ela tenha efeito benéfico. E ainda que a educação moderna ocidental deva em grande parte suas origens aos mosteiros cristãos, geralmente nos sentimos muito bem em receber uma educação de qualidade sem que sejamos obrigados a aceitar todas as crenças e doutrinas medievais.

Medicina e Educação trazem benefícios, assim como um programa de mindfulness, porém isso só ocorre quando dirigidos de forma justa, ética e com conhecimento. Não é a conexão com uma religião que traz eficácia a uma prática, mas a ética e o conhecimento com que se a pratica. Isso significa que uma crítica verdadeira ao “movimento mindfulness” e suas dimensões “McMindfulness” deve passar pela compreensão de como funciona essa habilidade humana (universal e não apenas propriedade de uma porção da população que subscreve a certa religião) e as deficiências presentes nos programas que se propõem a desenvolvê-la, e não por uma crítica de que ela não está vinculada a uma religião.

O problema com mindfulness atualmente não é sua desvinculação em relação ao buddhismo, mas sua vinculação com o mercado da ganância, do embotamento mental e da passividade diante das injustiças, que pessoas despreparadas anunciam com o nome de “mindfulness”. Como Ron Purser e David Loy explicitam: “Enquanto ser apresentada como uma técnica secularizada enxuta – o que alguns críticos estão chamando de “McMindfulness” – pode torná-la mais palatável ao mundo corporativo, a descontextualização de sua finalidade libertadora e transformadora original, bem como sua fundação na ética social, equivale a uma barganha faustiana. Em vez de aplicar ‘mindfulness’ como um meio de despertar as pessoas e as organizações em relação às raízes prejudiciais da ganância, má vontade e ilusão, ela tem sido comumente remodelada numa técnica banal e terapêutica de autoajuda que pode, na verdade, reforçar aquelas raízes“.

E, nesse sentido, um conhecimento dos princípios fundamentais éticos do buddhismo e de outras religiões, bem como da ética secular podem ser de grande valia para os instrutores de mindfulness que não queiram ser perpetuadores da ignorância presente no status quo da sociedade contemporânea. Mas isso não é algo que é dado meramente por vincular isso ou aquilo a uma religião. Como diz Bhikkhu Bodhi, um monge buddhista theravada bem conhecido: “Na ausência de uma crítica social afiada, práticas buddhistas poderiam facilmente ser usadas para justificar e estabilizar o status quo, tornando-se um reforço do capitalismo de consumo”. Em outras palavras, não é a desvinculação de mindfulness do buddhismo que deveria ser objeto de crítica, mas sim a desvinculação de qualquer coisa, incluindo mindfulness e buddhismo, dos princípios éticos mais nobres.

Outro ponto importante é que algo não pode ser criticado por algo que ele não propõe. Por exemplo, alguém poderia criticar que mindfulness não leva à felicidade quando separado do contexto buddhista, e por essa razão seria um engodo. Mas nenhum programa sério de mindfulness propõe que suas práticas levam à felicidade duradoura e permanente, ou de que levará o indivíduo a ver o mundo cor-de-rosa. Uma das características marcantes de um programa sério de mindfulness, um programa que seja laico, contemporâneo e não associado a uma religião particular, é de enfatizar a habilidade de estar presente e aberto aos altos e baixos da vida, permitindo-se olhar com clareza e compaixão tanto os aspectos positivos quanto negativos de si mesmo.

Mindfulness não é uma cura para tudo, não é uma panaceia. Mas enquanto prática laica ela colabora sim para um maior bem-estar, conhecimento de si mesmo, e uma vida com menos stress. E é esse seu objetivo. Alguns ficarão contentes com tais propósitos, e se sentirão gratos por terem conhecido mindfulness, ao invés de nunca a terem encontrado. Outros desejarão caminhar mais profundamente, investigando nos novos espaços (mentais) descobertos mais dimensões que os programas de mindfulness não contemplam. Aí sim será o momento em que novas fontes se mostrarão úteis ou mesmo fundamentais.

* Ricardo Sasaki é psicólogo clínico e um dos professores do NUMI. É também professor de dharma autorizado e diretor do Centro de Estudos Buddhistas Nalanda, tendo treinado sob diversos professores desde a década de 80.

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