Outro dia meus filhos desceram a rua aqui de casa para cortar bambus. Laçaram as pontas com pedaços de barbantes e, na outra extremidade das cordinhas, amarraram clipes, que entortaram simulando anzóis. Passaram os próximos momentos entretidos numa divertida e imaginária pescaria. Pouco depois, Manuel, o mais velho, veio me perguntar se eu já tinha pescado de verdade. Enquanto compartilhava com eles memórias das muitas e muitas vezes em que acompanhei o meu pai até a barragem da Baixa Grande, a fazenda de um tio muito querido (que frequentei durante toda a minha infância e onde meu pai e eu passávamos horas pescando), flashes, sensações e emoções surgiram de forma muito vívida em minha mente. Nesse momento, dei-me conta, com um misto de surpresa, alegria, afeto e gratidão, de que meu primeiro professor de mindfulness nunca participou de qualquer programa de oito semanas, nenhum retiro, muito menos curso de formação.
Antes de sairmos para pescar, meu pai iniciava um verdadeiro ritual. Camisa de manga comprida, calça, cinto equipado com bainha que guardava uma faca afiada, botas, repelente nas mãos e no rosto, lanterna, maletinha com anzóis e outros equipamentos, uma vasilha com iscas já preparadas anteriormente, as varas e, finalmente, uma bolsa verde, feita de um material que parecia uma redinha, para guardar as traíras que tivéssemos a sorte de pescar. Posso agora sentir o cheiro do quartinho onde esses materiais ficavam guardados, a forma, cor e textura dos materiais em si e a presença terna e compenetrada do meu pai, cuidando de cada detalhe e executando o rito. Saíamos da casa pouco depois do anoitecer. Éramos recebidos na lagoa por um coral variadíssimo de sapos e grilos. A noite era escura e o céu estrelado. A brisa, fria. O caminhar produzia sons crocantes no cascalho da estrada de chão. Quando chegávamos à beira da barragem, parecia que estávamos adentrando outro mundo. De fato, era um universo muito distinto daquele da cidade. Procurávamos um lugar para nos sentarmos no barranco, com cuidado para não escorregar e cair na lagoa. Meu pai preparava os anzóis com as iscas, os lançávamos na margem d’água e iniciávamos nossa prática. Lagoa, sapos, grilos, céu estrelado, vara de pescar, anzol, isca, meu pai e eu. Ele me ensinava a importância da atenção, da paciência, da imobilidade e do silêncio para não afastar e nem deixar de fisgar os peixes. A atenção, a paciência, a imobilidade e o silêncio, por sua vez, me apresentavam estados mentais bem característicos de se experimentar numa pescaria. Olhando retrospectivamente para essas experiências, noto que, mesmo sem saber, o peixe grande que todo pescador vai buscar, cada vez que sai para pescar é, justamente, esse estado de consciência.
Antes de me levar pela primeira vez à pescaria noturna na lagoa, meu pai, pacientemente, me treinou incontáveis vezes durante o dia a pescar piabas e carás, peixinhos pequeninos, fáceis de pegar. Mesmo nesse treinamento mais simples, havia uma preparação anterior ao ato de pescar em si. Cravar a terra com uma enxada e capturar minhocas como iscas. Aprender a espetá-las no anzol sem machucar os dedos. Ao lançá-las na água, cuidar para não engarranchar o anzol no mato submerso. Estar atento para notar o momento exato de puxar a vara, num gesto ágil e preciso, para conseguir fisgar o peixe, etc., etc., etc..
Pescar com meu pai: um curso ao mesmo tempo extensivo (que durou muitos anos) e intensivo (experiências marcantes e profundas) de mindfulness! Ao longo da vida, fui procurando e colecionando estudos e vivências que me fizessem compreender e que me levassem a experimentar aquele tipo de estado mental que a mim se apresentava nas pescarias (sem me dar conta de que os primeiros registros dessas experiências vinham de lá!).
Tanto na meditação quanto nas pescarias com meu pai, ingredientes estruturantes se apresentam: (a) preparar previamente os instrumentos necessários à prática; (b) encontrar o local e o momento apropriados; (c) ter uma intenção clara e saber o que fazer ao longo do processo; (d) cultivar as atitudes de atenção, calma, abertura, silêncio, estabilidade e imobilidade postural, presença e persistência; (e) expressar as virtudes de simplicidade, amorosidade, compaixão, alegria apreciativa (ficarmos felizes com o sucesso dos outros), equanimidade e gratidão; (f) alcançar e sustentar um estado de mente clara e não agitada; (g) a partir desse estado mental, contemplar a natureza das coisas; (h) através dessa contemplação, transcender a sensação de dualidade, de separação, de identificação com isso ou aquilo, e experimentar, ainda que por breves (e eternos) instantes, ser um com o mistério.
Além das frequentes pescarias na Baixa Grande, meu pai me levou para pescar em outros níveis. Na pré-adolescência, fui com ele, com minha mãe e um amigo-irmão do meu pai, o padrinho Rui, para uma imersão no rio São Francisco. Subíamos o rio de barco motorizado por cerca de duas horas. As varas agora eram equipadas com molinetes ou carretilhas. Nos anzóis, não mais minhoquinhas ou pedacinhos de carne, mas enormes minhocuçus. Aprendi a pilotar o barco, a habilidade de lançar longe o anzol usando o molinete, a forma correta de fisgar e “trabalhar” o peixe até trazê-lo ao barco; nem rápido demais (pois a linha poderia se arrebentar), nem devagar demais (caso contrário só chegava a espinha, sendo o peixe devorado no trajeto pelas piranhas). O ritual era um pouco mais complexo, a vivência muito mais rica e intensa, e os peixes mais variados e maiores (dourados, matrinxãns, surubins, pacus e, com maior frequência do que desejávamos, elas, as piranhas). Conhecer, navegar e pescar no rio São Francisco me marcou profundamente, foi como um rito de passagem.
Finalmente, eu já adulto e ele já idoso, meu pai me levou consigo em sua última viagem para pescar no Pantanal (programa que ele fazia com regularidade junto à turma da pescaria). Fomos de avião de Belo Horizonte (MG) até Campo Grande (MS) e, então, de ônibus até Corumbá. Embarcamos em um barco-hotel e subimos por dois dias o rio Paraguai, até chegarmos ao rio São Lourenço. Nessa época, a pescaria em si já não me despertava o interesse. Mas conhecer o Pantanal Mato-Grossense na companhia do meu pai, isso sim!
Assim como é possível observar em vários dos seguimentos contemporâneos de mindfulness, a pesca esportiva cresceu muito e transformou-se em um negócio elitizado e muito lucrativo. A experiência sublime de presença, tranquilidade, amorosidade e integração com a natureza que eu havia experimentado na Baixa Grande, não encontrei naquele barco-hotel. Assim que chegamos, os outros “hóspedes” correram avidamente à frente, para a escolha das melhores cabines (quartos). Sobrou para o meu pai (o mais velho do grupo) e para mim (o mais jovem) o quarto situado ao lado do motor, que fazia bastante barulho durante toda a noite, enquanto navegávamos rio acima. Lembro que meu pai lidou com a situação de forma humilde, tranquila e equânime, expressando nada além de um leve desapontamento e pesar. Um comerciante famoso no ramo, que conduzia um programa televisivo sobre pescaria à época e que vendia equipamentos variados, estava no barco. Instigava nos tripulantes o desejo pelas mais modernas carretilhas, apresentava “ofertas” de iscas artificiais super eficazes (e caríssimas!). Na preparação dos equipamentos, os pescadores apresentavam com orgulho, uns para os outros, suas varas importadas, linhas de última geração, carretilhas robustas e potentes. Pela manhã, após o café, do barco grande saíamos em duplas, em barcos de pesca menores, junto a um experiente piloteiro local. Havia um certo frenesi no ar de apostas e disputas sobre quem encontraria o melhor pesqueiro. Ao retornarmos para o barco-hotel, a competição pelo maior peixe, pela maior quantidade de peixes e pelas espécies mais raras e cobiçadas (em extinção!) era devidamente registrada e, no final da pescaria, literalmente premiada com troféus. Dentro do barco, mais que fartura, havia abuso de comida e bebida. As conversas, recheadas de piadas classistas, racistas, sexistas e homofóbicas. Meu professor de mindfulness não se envolvia nessas dinâmicas, tão pouco se demonstrava afetado por elas. Cuidava de seu equipamento, que era simples, bom e suficiente, era amistoso e gentil com todos, solicitava ao piloteiro para navegar de forma segura e sem pressa, e me levava para pescar. Conheci, ao lado dele, paisagens maravilhosas! Externas e internas.
Ao longo da vida, além do meu pai, tive o privilégio de encontrar e ser acolhido por outros grandes pescadores. Louis Ricci foi um professor amoroso, dedicado e revolucionário, estruturante em minha formação. Vanessa Barros ajudou meus olhos a enxergarem com maior precisão as margens, e a entender que o que se pensa e se define sobre a atividade do pescador é sempre muito distinto da atividade real e, mais ainda, do real da atividade. Marcelo Demarzo foi extremamente generoso ao importar e distribuir no Brasil varas de pescar acessíveis, robustas e eficazes. Se meu pai me levou da barragem da Baixa Grande até o Pantanal, Ricardo Sasaki me apresentou o oceano. Para navegar e pescar nele, é preciso conhecer outros equipamentos, outras abordagens e, mais que isso, é preciso aprender sobre o mar e sobre o navegante. Além de me possibilitar mirar o mar, Ricardo me apresentou a Santikaro e Dhammadipa, capitães com profunda experiência que, generosamente, compartilharam mapas daqueles que só são encontrados em arcas de tesouros. Ramon Cosenza trouxe ensinamentos fundamentais sobre a estrutura do barco, sobre bússolas e outros instrumentos de navegação, bem como sobre oceanografia, meteorologia, astronomia, fisiologia, química, física, etc..
Tomei gosto pela coisa! Acho que nasci para pescar. Desconfio que todos nós tenhamos nascido para isso.
.: Paulo Henrique Faleiro dos Santos é psicólogo clínico, mestre em psicologia social, fundador e um dos professores do NUMI.
Tiro meu stresse na pescaria, lá tudo some.
Bravo!!! Um esteta na arte da pescaria. Um pescador de almas…