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Como mindfulness pode ajudar as mulheres a resgatar a autoconfiança e a autenticidade

Como mindfulness pode ajudar as mulheres a resgatar a autoconfiança e a autenticidade

 

Como mindfulness pode ajudar as mulheres a resgatar a autoconfiança e a autenticidade

por Kelma Medrado

Como praticante e instrutora de mindfulness ao longo da última década tenho tido a oportunidade de observar o funcionamento da minha mente, notando como ela é condicionada e apresenta um certo padrão de reatividade. Noto aversão em forma de irritação, julgamentos e auto-julgamento, apego em forma de expectativa, tentativas de controle, confusão em forma de agitação… Observar isso com distanciamento, sem me deixar arrastar ou me submeter a essas reações automáticas, tem me trazido poder de escolha e uma enorme sensação de liberdade.

Hoje eu gostaria de dividir com vocês uma grande “ficha que está caindo” dentro de mim nos últimos anos. Penso que essa ficha está caindo, porque esse dar-se conta está em processo. Vários comportamentos e padrões mentais opressores que observo têm relação com o simples fato de eu ser mulher. Se isso soa estranho para vocês, eu já me explico.

Todas nós desde crianças aprendemos a formar percepções e ideias sobre como deveríamos e não deveríamos ser, e sobre o que deveria acontecer conosco. Em um país sexista e marcado pela diferença entre os gêneros tornar-se pessoa é tornar-se homem ou mulher, como tem refletido a professora Waleska Zanello, da Universidade Federal de Brasília, em seus trabalhos sobre gênero e saúde mental. A pedagogia de gênero praticada em diversos países ocidentais ensina às mulheres que elas sempre precisam se questionar se são boas o suficiente, que devem estar preocupadas com a aprovação e com o bem-estar dos outros, priorizar a demanda dos outros em detrimento delas próprias. Talvez uma das aprendizagens mais palpáveis seja a forma de nos relacionarmos com o corpo. É preciso mantê-lo ao máximo possível jovem e esbelto, para se sentir adequada.

Parece que nós, mulheres, aprendemos a usar um tipo de “óculos” que nos leva a ver a nós mesmas como insuficientes e a buscar sempre a  validação pelo olhar do outro. Mare Chapman, autora do livro “Unshakeable confidence: the freedom to be our authentic selves”, nomeia e descreve esse mecanismo heterocentrado, presente em grande parte das mulheres da nossa cultura, com o termo othering.  Este é um termo que não tem uma tradução direta para o português, mas que poderíamos compreender como um olhar centrado no outro.  Isso significa um movimento mental automático da atenção para longe de si e em direção ao outro, que busca por aprovação externa, baseado na suposição de que o outro tem mais poder, autoridade e privilégio. Em outras palavras, penso que othering é um mecanismo que prende nosso valor enquanto pessoa à percepção do que o outro pensa sobre nós; depositamos o parâmetro de avaliação no outro, no intuito de agradá-lo para nos manter desejadas e queridas por ele.

Isso quer dizer que ao invés de confiarmos em nós mesmas, em nossos conhecimentos e sabedoria interna preferimos balizar nosso comportamento e auferir nosso próprio valor pelo olhar do outro, por uma medida externa.

Como uma programação padrão essas aprendizagens antigas se tornam hábitos que operam tão automaticamente que quase vivemos em transe. A menos que acordemos totalmente, vamos seguir sonâmbulas por nossas vidas, reagindo habitualmente sem consciência ou escolha, às vezes, nos dando conta de algum incômodo indefinido e sem nome que nos rouba a vitalidade e a autenticidade.

Todas essas ideias internalizadas e a preocupação de ser bem vista pelos demais criam narrativas mentais repetitivas com temas que giram em torno de como devemos atender às solicitações de cuidado com os outros, de como temos que nos manter esbeltas ou atraentes. Ou ainda, para ter valor como mulher não basta ser você, é preciso ser escolhida, ter um parceiro. São histórias decorrentes das percepções e crenças, na maioria das vezes inconscientes, que fazem parte de um desenho padrão de como ser mulher. Nos sentimos inadequadas e desconfortáveis se não as atendemos. Elas moldam nossa identidade e autoconceito marcando uma forma habitual de reagir. A partir dessas narrativas marcadas pela insegurança, ficamos às voltas com uma autocrítica severa e uma dúvida paralisante que pode ser a raiz de nossa ansiedade crônica, auto ódio, depressão, distúrbios alimentares e tantos outros sofrimentos que padecemos porque estamos tentando nos adaptar, ao invés de nos aceitar.

Na minha própria experiência, e ouvindo outras mulheres, noto como esta forma de funcionamento traz sofrimento e fragiliza nossa saúde mental. Eu poderia compartilhar vários exemplos desse tipo de condicionamento, como, por exemplo, a necessidade persistente de receber aprovação pelas tarefas realizadas no trabalho. Para mim, quando caio nessa armadilha, é como se eu tivesse perdido minha bússola interna e não soubesse avaliar meu próprio desempenho ou não pudesse simplesmente ficar satisfeita por ter procurado fazer da melhor forma possível. Isso é profundamente cansativo, porque parte do estado mental de inquietação que se baseia em um medo profundo de que não importa o quanto você se esforce não será suficiente. É como se precisássemos ficar em alerta, vigiando os próprios erros para não decepcionar o outro, desenvolvendo uma auto avaliação crônica e tensa, que procura antecipar o que o outro espera de nós.

Já percebeu que para muitas mulheres é difícil falar “não”? Lembro de minha mãe se queixando de cansaço por ter que cozinhar todos os dias. Ao sugerir-lhe para comer fora para que pudesse descansar, ela me respondia: “Ahhh, seu pai não gosta de comida da rua, minha filha!” Aprendemos que primeiro temos que cuidar do outro e depois, bem depois, talvez possamos cuidar de nós. Quando colocamos as necessidades do outro sempre em detrimento das nossas operamos no sacrifício, acabamos cansadas e frustradas e possivelmente nossas relações podem acabar desgastadas.

E como mindfulness pode nos ajudar com isso?

A primeira fase de mindfulness é dar-se conta da experiência presente tal como ela se apresenta, sem julgar e reconhecendo o que acontece com aceitação. Quando passamos a desenvolver esta consciência vigilante, não apenas nos damos conta da experiência, mas também de como a mente reage a ela. O que nos permite conhecer nossos padrões mentais, reações e comportamentos automáticos. Bem, o primeiro passo é reconhecer como o othering (e outros padrões de gênero) estão presentes na forma como nos relacionamos de maneira automática e inconsciente. Trata-se de investigar o que experimentamos quando retiramos o foco de atenção de nós mesmas, para confiar na avaliação do outro. Nos sentimos mais fortes e autônomas ou inseguras e débeis? Isso nos gera confiança e alegria ou recolhimento e sofrimento?

Depois que reconhecemos um padrão de funcionamento que leva a estados mentais insalubres e aflitivos ou a situações de sofrimento, usamos nossa melhor habilidade para nos mantermos vigilantes e não cair nas armadilhas do automatismo mental. Esta é a fase protetiva de mindfulness. No entanto, leva tempo até conseguirmos não nos deixar levar pela reatividade de padrões tão arraigados. Pode ser que seja um processo para uma vida inteira. Possivelmente, vamos nos assistir caindo em velhos padrões muitas vezes. E está tudo bem, cultivar a intenção de se manter consciente é o que vai nos ajudar a sair da repetição e do sofrimento. Quanto mais consciência temos dos mecanismos automatizados atuando em nós, mais rapidamente retomamos um estado de clareza mental e maior capacidade de discernimento e escolha. Quando nos damos conta de um estado mental aflitivo presente em nós, e agimos no intuito de restaurar nosso estado de equilíbrio, lançamos mão da nossa capacidade de intervir e restaurar a partir de mindfulness.

O othering é um padrão aprendido desde o início das nossas vidas e com raízes profundas em uma sociedade organizada pela desigualdade entre os gêneros. Isso o torna especialmente mais difícil de reconhecer porque os comportamentos que envolvem o tornar-se mulher, numa sociedade que privilegia os homens, são positivamente reforçados. O silêncio e o comportamento de docilidade pelo bem-estar das relações, o comprometimento das mulheres com os padrões estéticos da magreza e da juventude, a responsabilização pelo bem-estar e cuidados com os outros, são exemplos de comportamentos  que colocam as mulheres como engrenagens a serviço do funcionamento de uma sociedade dominada pelos interesses dos homens em detrimento de suas próprias expressões.

Despertar nossa consciência para estes aspectos internalizados e para os padrões que condicionam nosso valor a certas fórmulas não é apenas uma maneira de encontrar nossa própria liberdade de ser. Esse despertar estabelece as bases para uma ação em direção contrária à estrutura patriarcal que nos torna invisíveis e nos submete.

Quando uma de nós desperta nos tornamos a possibilidade de que cada uma possa despertar e tornar-se si mesma!

1 comentário em “Como mindfulness pode ajudar as mulheres a resgatar a autoconfiança e a autenticidade”

  1. Texto brilhante, Kelma!
    Gostaria que todas as mulheres (e também, homens) tivessem a oportunidade de serem tocadas por um insight tão potente como esse.
    Parabéns pela reflexão generosamente compartilhada.
    Vou compartilhar!
    Esperançar e saúde para todos nós!

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