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Mindfulness e Egoísmo

 

Nas últimas décadas, o movimento secular de mindfulness (consciência plena) ganhou o mundo ocidental através de programas psicoeducativos estruturados, como o MBSR (Redução de Estresse Baseada em Mindfulness), o MBCT (Terapia Cognitiva Baseada em Mindfulness) e vários outros protocolos semelhantes. Essas intervenções vêm demonstrando, através de evidências científicas, alguns benefícios relacionados à promoção de saúde mental. Ainda que variados e, portanto, distintos entre si, os Programas Baseados em Mindfulness (PBM) compartilham um conjunto de ingredientes fundamentais: 1

  • São estruturados por teorias e práticas que derivam de uma confluência entre tradições contemplativas, ciência e disciplinas da psicologia, medicina e educação.
  • Sustentados por um modelo que aborda as causas da angústia e do sofrimento humano e os caminhos para aliviá-los.
  • Voltados ao desenvolvimento de um novo relacionamento com a experiência caracterizada pelo foco no momento presente, descentralização (ou desfusão cognitiva) e abertura ao contato com o que se manifesta.
  • São laicos, sustentados por evidência científica e abordagens contemporâneas.
  • Aplicáveis em contextos seculares, de ampla variedade cultural e igualmente acessíveis a pessoas com distintas filiações religiosas e valorativas.
  • O treinamento é realizado através de práticas formais diárias, realizadas individualmente, com o apoio de orientações gravadas.
  • Ao longo do programa, os participantes são também incentivados a ampliar o campo de aplicação de mindfulness através das práticas informais, trazendo conscientização de maneiras específicas às atividades cotidianas.
  • Tipicamente incluem três práticas formais de treinamento em mindfulness: (a) escaneamento corporal, (b) movimentos com plena consciência e (c) meditação sentada.

 

Numa primeira aproximação, a prática de mindfulness pode talvez ser percebida como uma atividade essencialmente mentalista, introspectiva, voltada à busca pelo bem-estar, conforto e satisfação pessoal o que, portanto, afasta o/a praticante do contato, reflexão e interação com as condições externas, objetivas e coletivas de vida (materiais, sociais, culturais e políticas). Essa perspectiva é rasa e não se sustenta mediante à correta compreensão e vivência de mindfulness.

Conforme acima mencionado, essa abordagem é sustentada pela investigação das causas da angústia e do sofrimento humano, bem como dos caminhos para aliviá-los. Talvez concordemos que a busca pela felicidade e o desejo de se afastar do sofrimento são motivações universalmente compartilhadas, que caracterizam nossa condição humana, ainda que, naturalmente, possamos apreender de formas distintas esses dois conceitos. Nesse sentido, é importante esclarecer que, no enfoque de mindfulness por nós adotado, felicidade não é sinônimo de hedonismo, satisfação sensorial, prazer, conforto e bem-estar pessoal. Da mesma forma, sofrimento não deve ser confundido com desconforto, desagrado ou desprazer.

De acordo com tradições contemplativas milenares ou, mais especificamente, as tradições buddhistas (de onde os exercícios formais presentes nos PBM seculares e contemporâneos foram retirados, assim como o próprio conceito e aplicação de mindfulness), o sofrimento humano está intimamente associado à expressão de um conjunto de estados mentais, e de ações deles decorrentes, que podem ser agrupados em três grandes categorias: (a1) ignorância, (a2) ódio / aversão e (a3) ganância. A felicidade, por sua vez, está atrelada à manifestação de estados mentais diametralmente opostos, ou seja: (b1) clareza / compreensão / sabedoria, (b2) amorosidade / abertura e (b3) contentamento / generosidade. No contexto dessas tradições, mindfulness é uma faculdade ou habilidade mental cultivável, que nos permite manter a vigilância e perceber os variados tipos de inclinações e estados mentais, distinguindo os nocivos dos saudáveis, isto é, aqueles que nos aproximam ou nos afastam da felicidade ou do sofrimento.

A partir de um olhar minimamente curioso, pode-se notar um denominador comum entre os aspectos 2 e 3 dos estados mentais atrelados ao sofrimento humano. O mesmo se passa com os aspectos 2 e 3 vinculados aos estados mentais associados à felicidade. Esses distintos denominadores comuns, ao menos da forma como consigo apreender, são exatamente o que caracteriza o primeiro aspecto de cada grupo de estados mentais. Vejamos: Ódio e ganância surgem de (e retroalimentam) uma identidade egóica, uma espécie de personagem mental, constituído por pensamentos, emoções e sensações físicas, que assume um senso de “eu” permanente e passa a se perceber separado e independente dos “outros”, devendo ser constantemente fortalecido (através de aquisições) e protegido da aniquilação (aversão às ameaças). Assim, um conjunto de memórias, papéis sociais, crenças, percepções sensoriais e emoções passa a ser assumido e defendido como constituintes de “eu”, “mim” e “meu”, ou seja, um erro de percepção, uma ignorância fundamental (primeiro aspecto). Por sua vez, amorosidade (interesse genuíno pelo bem-estar e florescimento de tudo o que vive), abertura (às distintas formas de manifestação de vida e de perspectivas), contentamento (o avesso do sentimento de falta/carência) e generosidade (inclinação ao compartilhamento do bem o do bom) são estados mentais e atitudes que se colocam à serviço de adelgar e expandir as fronteiras que conformam esse senso de “eu” e, principalmente, permitem a observação da realidade como um conjunto dinâmico de fatores complexos, impermanentes e absolutamente interdependentes, uma dança de causas e efeitos. Tal observação da realidade caracteriza os aspectos de clareza, compreensão, sabedoria.

Na tradição judaico-cristã compartilha-se, através de gerações, o mito do gênesis, alegoria na qual Adão e Eva (que representam a dualidade) são expulsos do paraíso (a unidade) após cometerem o “pecado original”, qual seja, comerem o fruto do conhecimento. Nesse momento, eles se percebem separados, distintos, nus e sentem vergonha, remorso/culpa, carência e medo (senso de “eu”). As raízes etimológicas da palavra pecado estão ligadas a “errar o alvo” ou “sair da rota”. Após o pecado original, portanto, qualquer ação é realizada dentro de um campo de erro (ignorância), gerando consequências (sofrimento) que não podem levar ao alvo ou à rota original (felicidade, paraíso).

Assim, da forma como a compreendemos e abordamos, mindfulness, desde suas origens tradicionais até suas expressões contemporâneas e seculares, não é algo dedicado ao fortalecimento, à satisfação, ao conforto ou ao bem-estar de um senso de eu isolado e autocentrado, mas, ao contrário, refere-se ao cultivo de habilidades que favorecem a emancipação em relação a essa distorção perceptiva, à desfusão cognitiva e à desalienação da consciência. Ao cultivarmos a clareza, a compreensão e a sabedoria, que trazem consigo a clara noção de interdependência e de causalidade, naturalmente nos colocaremos lado a lado, colaborando na dinâmica construção do bem-comum.

 

1 Crane RS, Brewer J, Feldman C, Kabat-Zinn J, Santorelli S, Williams JM, Kuyken W. What defines mindfulness-based programs? The warp and the weft. Psychol Med. 2017 Apr;47(6):990-999. doi: 10.1017/S0033291716003317. Epub 2016 Dec 29. PMID: 28031068.

 

.: Paulo Henrique Faleiro dos Santos é psicólogo clínico, mestre e doutorando em psicologia social, fundador e um dos professores do NUMI.

1 comentário em “Mindfulness e Egoísmo”

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